Com raias pintadas na rua, projeto ensina atletismo para crianças e adolescentes

'Correndo para o futuro' auxilia jovens a praticar esporte e já foi elogiado até por Usain Bolt

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Por Andreza Galdeano
5 min de leitura

A pista de atletismo pintada em uma rua tranquila no bairro de Itaquera, na zona leste de São Paulo, chama atenção de quem passa. Lá, um ex-atleta universitário realizou o sonho de proporcionar a inclusão social para jovens da periferia através do esporte. O projeto “Correndo para o Futuro”, da Associação Esportiva e Cultural Kauê, reúne crianças e adolescentes que buscam uma vida melhor. Em 21 anos de história no asfalto paulistano, seu trabalho já atraiu olhares de várias partes do mundo.

"Usain Bolt falou que eu sou o cara", conta o fundador da associação, Francisco Carlos da Silva. Logo após pintar uma pista de cinco raias e 200 metros de comprimento, que simula um traçado oficial com a metade do tamanho, o projeto fez tanto sucesso que chamou a atenção de gente ligada ao esporte. Entre as ilustres visitas que recebeu, uma foi a do ex-velocista jamaicano. 

Projeto 'Correndo para o Futuro' usa rua do bairro de Itaquera para ensinar atletismo paracrianças e adolescentes entre 3 e 15 anos Foto: Daniel Teixeira / Estadão Conteúdo

Bolt, que ao longo da carreira conquistou oito medalhas de ouro olímpicas e outras 11 em mundiais de atletismo, visitou o projeto no início deste ano e afirmou que nunca viu em nenhum outro lugar do mundo o trabalho feito em Itaquera. As palavras do jamaicano foram tão motivacionais para Francisco que suas frases ocupam um cartaz localizado na sede da associação, onde recebeu a reportagem do Estado.

"Aqui também vieram representantes do Barack Obama (presidente dos Estados Unidos entre 2009 e 2017). Recebemos o consulado dos Estados Unidos, os atletas Marílson Gomes dos Santos, Alan Fonteles e Giovani dos Santos. Tivemos até homenagens da seleção americana e repercussão em países como Itália e Holanda", conta Francisco. "Recebi muito reconhecimento internacional e muitas vezes sou órfão do País onde plantei raiz, constituí minha família e estou desenvolvendo um projeto de inclusão social para mudar a vida das pessoas da região."

Em aulas ministradas às segundas, terças e sextas, Francisco reúne de 50 a 60 crianças e adolescentes entre 3 e 15 anos para praticar atletismo. Por volta das 19h, os alunos começam a lotar a rua Nicolino Mastrocola. Por lá, são colocados cavaletes para sinalizar aos carros que passam pelo local que o treinamento dos jovens vai começar.

O cenário acaba mudando o ambiente do bairro e os jovens atletas se sentem preparados para enfrentar os desafios que ultrapassam as barreiras das dificuldades diárias. "O meu sonho era só montar um time de futebol e dessa equipe nasceu uma entidade que é respeitada fora do Brasil", revela Francisco, que criou a associação a partir de um time de futsal para homenagear o seu primeiro filho. Naquela época, ele percebeu que o esporte poderia mudar sua vida e que deveria passar essa lição adiante.

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"Não temos essa pista por vaidade, mas pela necessidade. Eu não tenho orgulho de ter uma pista de atletismo pintada na rua, mas ela conta a nossa história. Não vou dizer que esse seja o cenário ideal, porque não é possível trabalhar em alto rendimento em uma pista pintada no asfalto, mas, infelizmente, a nossa necessidade de ter uma pista oficial não depende do poder das minhas pernas ou da força do meu coração, que é o que eu uso para tentar mudar a vida dessas crianças", explica.

O ex-atleta conta que recebe ajuda de empresas privadas, mas não tem nenhum patrocínio fixo ou auxílio de órgãos públicos. "Procuramos mostrar para as pessoas que vale a pena insistir e acreditar no projeto de inclusão social e que isso vai gerar retorno algum dia. Quando as empresas passam a acreditar nisso, elas estão acreditando nas pessoas. Acreditar nas pessoas faz com que as coisas aconteçam na vida."

Em sua sede, ele tem custos mensais que somam cerca de R$ 1.500, contando água, luz e Internet. Francisco também precisa pagar as inscrições dos atletas nas competições e a troca de materiais esportivos. Além do projeto de atletismo, ele mantém trabalhos com artesanatos, reforço escolar, laboratório de inclusão digital e academia aos moradores da comunidade. Faz de tudo um pouco.

Apesar dos custos, ele explica que o próprio esporte ajuda a manter sua associação. "Hoje temos muitos atletas de alto rendimento que não pagam inscrições. Sobre os materiais esportivos, esse é o menor dos nossos problemas, pois recebemos muitas doações. Antes, eu chegava a tirar o meu próprio tênis do pé para dar ao aluno. Agora, você vê garotos que não têm o que comer em casa, mas andam com um tênis de R$ 300 para treinar. Isso é doação, ajuda de amigos e empresas. Apesar de não ter nenhum patrocínio oficial com alguma marca específica, temos reconhecimento", comenta.

Além disso, Francisco recebe a ajuda de diversos ex-alunos. "Quando eles ganham prêmios, chegam aqui e ajudam quem está começando. Temos um acordo de que tudo de bom que eles recebem, eles precisam transmitir para as outras pessoas. Se você sentiu na pele a dificuldade, no dia que você tiver condições você vai oferecer isso e vai devolver para aqueles que estão perto de você. Essa é a realidade de uma comunidade", afirma.

"Eu acredito que por mais impossível que sejam os nossos sonhos, por mais obstáculos que precisamos enfrentar, se você for determinado, acreditar e transmitir valores, vão ter outras pessoas que vão sonhar com você. Eu não tinha uma sede, não tinha uma pista, ainda não tenho, mas ofereço o que muitos clubes não conseguem oferecer. Aqui nós dividimos quando não tínhamos nem a capacidade de multiplicar", complementa Francisco.

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ROTINA E SONHOS

Aos 48 anos, Francisco divide a sua rotina entre o trabalho voluntário na associação e a própria empresa de prestação de serviços de informática. Ele trabalha de segunda a sexta em horário comercial, três vezes por semana acompanha os treinamentos dos jovens e aos finais de semana ele está presente nas competições. "Muitas vezes, eu faço só uma refeição por dia. Mas penso “tudo bem, antigamente, eu não tinha nem o que comer". Então, o que me alimenta é a vontade de transformar a vida das pessoas e fazer com que elas se sintam motivadas”, ressalta.

O seu próximo projeto é criar uma pista de atletismo de 400 metros, fora do asfalto, que custaria em torno de R$ 1 milhão. Ao lado da sua sede, fica localizado o Parque Linear, considerado o "local perfeito". "Nós não vamos abandonar a rua, mas o asfalto pintado ficaria como o símbolo do nosso projeto."