De ídolo do futebol africano a prisioneiro

Craque do Burundi vive tormento no maior campo de refugiados do mundo no Quênia e limpa chão na ONU

PUBLICIDADE

Por Jamil Chade
Atualização:

DADAAB, QUÊNIA5:30 da manhã. Jean Habamungu já está esfregando o chão da cafeteria da ONU, dentro do maior campo de refugiados do mundo com 440 mil pessoas. Não demora muito para que os primeiros funcionários das Nações Unidas cheguem para tomar seu café da manhã e começar o dia. Ninguém diz sequer bom dia a Jean. Ninguém o conhece. Jean saiu há dois anos do Burundi como refugiado, depois de ser perseguido pelas forças do governo, que tinham sua cabeça à prêmio. Se no campo de refugiados, Jean é apenas um faxineiro, em sua terra natal era e é um ídolo. Ele tornou-se um dos principais atacantes do país africano, fazendo milhares de pessoas vibrarem com seus gols. "Não posso nem acreditar o que está acontecendo comigo. Fugi para salvar minha vida. Mas não sabia que terminaria numa prisão", disse ao Estado. Jean saiu do Burundi por conta de seu envolvimento nas investigações sobre o genocídio cometido pelo governo. O atacante colaborava para uma ONG local, dedicada justamente a coletar informações sobre o massacre. "Poucos dias antes da publicamente das nossas descobertas, o governo anunciou que não permitiria que o resultado fosse conhecido", contou. "Destruíram os escritórios e cerca de 60 pessoas tiveram de sair do Burundi." Seu primeiro destino foi o Congo. " Mas quando cheguei lá, um garoto de 12 anos com uma arma que ele nem conseguia carregar me gritava, dando ordens e dizendo que ele já era general", disse. "Entendi que precisava buscar outra solução", apontou. O próximo destino foi Dadaab, no Quênia. Mas a opção agora se transformou em um pesadelo. Os refugiados da Somália que estão no mesmo acampamento acusam os do Burundi de terem contribuído para a guerra em Mogadício nos últimos 20 anos. Como revanche, atacam e até matam os refugiados do Burundi em Dadaab. Jean conta que seu grupo teve de ser retirado da área de contato com os somalis. "Somos refugiados dentro do campo de refugiados." Enquanto esfrega o chão, uma tevê no local mostra os melhores momentos da rodada do Campeonato Inglês. Jean para um momento e admite: "Esse era meu sonho. Sei que se eu sair daqui, farei muito sucesso", disse o atacante que contou ganhar US$ 2 por dia para trabalhar nos serviços das Nações Unidas. Jean não poupa críticas à entidade. Desde que chegou a Dadaab ainda não recebeu os documentos que a ONU prometeu. "Não tenho nenhum documento, só minha ficha de inscrição no campeonato do Burundi. A ONU só promete e fala. Mas ninguém acredita que eles vão mudar nossas vidas", disse. Em um pequeno envelope, Jean ainda guarda algumas lembranças de seus dias de glória. Uma foto da namorada que ficou no país de origem e fotos de seus melhores lances. Jean era o atacante do Academie Tchite, um dos principais clubes do país. Mesmo de dentro do campo de refugiados, o jogador conseguiu fazer contato com o atual campeão do Quênia, FC Tusker. Há seis meses, forjou a doença de um parente seu em Nairobi para conseguir uma autorização para fazer uma viagem de dois dias. Se apresentou ao clube, fez um teste e foi aprovado como titular. "No dia seguinte, voltei para o campo de refugiados para buscar minhas coisas e pedir a autorização definitiva para jogar. Mas não fui autorizado a sair", declarou. O governo queniano se recusa a dar autorizações para que os refugiados cheguem às grandes cidades, o que faz com que muitos estejam lá há 20 anos e sem nenhum futuro. "Nos dias que se seguiram, o clube me ligava todos os dias para perguntar quando eu iria me apresentar. Mas eu não podia dizer que era refugiado e que estava esperando a autorização. Nenhum time contrataria um refugiado", explicou. Jean acabou perdendo a vaga. Com o passar dos anos, o atacante já tem pesadelos em pensar que passará o auge de sua forma física limpando o chão da ONU. Jean decidiu modificar sua data de nascimento na ficha da federação do Burundi. Apesar de ter 24 anos, Jean optou por mudar para 19 anos. "Assim acho que tenho mais chances de ser contratado", acredita. Mas sabe que enquanto não conseguir uma autorização para deixar o campo de refugiados, terá de reinventar sua idade em diversas ocasiões. "O problema é que, em um certo momento, ninguém mais acreditará", resignou-se.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.