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De 'monstro' à capa de revista: a reviravolta da medalhista de bronze Raissa Rocha

Brasileira contou o processo de se aceitar como cadeirante e negra e como chegou a mais de 53 mil seguidores nas redes sociais

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Por João Prata e enviado a Dubai
Atualização:

Aceitar a deficiência física é um processo e o esporte paralímpico muitas vezes torna-se o meio para essa transformação. Com Raissa Rocha foi assim. Na adolescência ela olhava no espelho e via "um monstro" por ser negra, por não ter o cabelo liso e por ter de se locomover em uma cadeira de rodas devido ao problema congênito de má formação das pernas.

Os treinos no lançamento de dardo fizeram bem lentamente ela mudar esse pensamento. Raissa ganhou confiança, recebeu elogios, deixou de alisar o cabelo, foi chamada para ser capa de revista, passou a ser seguida por milhares de pessoas nas redes sociais  e nesta segunda-feira faturou a medalha de bronze no Mundial de Atletismo de Dubai. A meta agora é obter o índice para Tóquio-2020. Antes disso vai descansar uma semana com a família em Uberaba, Minas Gerais, onde mora desde a infância por causa das cirurgias que precisou fazer para minimizar o problema físico. Ela é Ibipeba, na Bahia. Ao Estado, ela contou o caminho para toda essa transformação:

Raissa Machado ficou com a prata no lançamento de dardo. Foto: Daniel Zappe/Exemplus/CPB

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Bronze no Mundial de Dubai. O que achou da prova? Foi complicado. Cinco arremessos meus foram cancelados e depois validados. Queimou, fiquei sem entender e depois pela conversa dos árbitros levantaram a bandeira branca. Eu me amarrei na cadeira. Se não tivesse acontecido acho que teria melhor resultado. Sei que poderia ser melhor. Mas está bom, é assim, é a vida. Vou ter que me treinar porque o foco é Tóquio.

A meta agora é Tóquio-2020? Vou treinar muito para conseguir o índice. Hoje é de 24m09. Minha melhor marca é 23m96. Está perto. É só pegar uma competição zen, ter árbitros que não atrapalhem.... Esse Mundial serviu para aprender, ver as adversárias. A gente estuda também as pessoas, né? Vi que dá para pegar. É só treinar, focar, estar com a cabeça boa. 

O índice é 24m09, mas o recorde mundial na F-56 é 24m03. Você vai ter que bater o recorde mundial para ir aos Jogos no Japão?  Pois é... Por causa da junção de classes do programa, vou competir com as meninas da F-55, que são mais fortes. Mas a gente bate. Pegar uma semana de férias. Vou para Uberaba descansar e depois volta para focar porque tudo vai dar certo.

Raissa Rocha em desfile no lançamento do uniforme do Brasil deste ano. Foto: Daniel Zappe/Exemplus/CPB

Agora falando um pouco da sua trajetória. Você já disse que teve muita dificuldade em aceitar sua deficiência. Quando que começou essa rejeição?  Na base dos 13 anos, entendi que era diferente dos outros colegas. Olhava no espelho e não gostava de mim, me achava um monstro, porque minhas pernas são tortas. Sou bem pequena. Tive uma dificuldade muito grande de me aceitar e ainda estou neste processo. 

E como o esporte paralímpico te ajudou nessa transformação? Digo que o esporte paralímpico que me descobriu. Morava em Uberaba, e fui conhecer a Adefu (Associação dos Deficientes Físicos de Uberaba). Os técnicos viram o tamanho do meu braço, o meu tronco e disseram que tinha nascido para ser atleta. E eu não queria. Se dependesse de mim não estaria aqui hoje.

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O que te fez mudar?  Quando vi pela primeira vez um monte de cadeirante junto. Fiquei louca. Meu Deus, o que estou fazendo aqui? Meu mundo até então era estar em volta de um monte de pessoas perfeitas e só eu que não era. Comecei a me aproximar do esporte, ver outros deficientes e ver também que havia pessoas com deficiências muito piores do que a minha e que viviam felizes. Pensei: 'cara, estou reclamando demais da vida'. 

Quando que chegou à seleção brasileira? Em 2009 comecei a praticar. Mas não gostava muito de treinar. Tem que falar a verdade, né? Em 2013 fui convocada pela primeira vez pela seleção de jovens e não saí mais. Em 2015 disputei o Parapan de Toronto e terminei com o bronze, quando subi para a seleção de adulto. Depois teve o Mundial de Doha-2015 que fui prata.

Raissa com os cabelos curtos no início do processo de mudança em 2017. Foto: Daniel Zappe/CPB

Como foi seu desempenho no Rio-2016? Perdi para mim mesma. Não foram para as adversárias. Foi pra mim. Terminei em sexto. Naquele momento ainda não tinha aquela dedicação aos treinos. E quando vi que era capaz de vencer uma competição... vi que não me dediquei igual a eles. Parei e pensei: é isso mesmo que eu quero? Então tenho que me dedicar mais.

Foi difícil esse processo? Muito porque foi um processo de transformação da minha vida. Tinha o cabelo alisado, não aceitava como eu era. Em 2017 quase fiquei com depressão. Fiquei muito triste de perder para mim mesmo no Rio, fiquei muito mal. Hoje vejo que parece que precisava daquilo para começar a me aceitar como eu sou. O meu técnico Igor ia na minha casa me buscar. Passei 2017 sem fazer marca. Quando todo mundo achava que tinha sumido, foi quando fiz a melhor marca da minha vida. Fui de 19 metros para 21m011. Bati no peito e falei: 'sou atleta'.

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Como foi a transformação física? Foi difícil também. Teve um dia que fui no salão e falei: 'pode raspar'. E aí no ano passado, em novembro, comecei com o Instagram. Para muitos parece uma competição de rede social, quem está maior. Para mim foi uma salvação porque me ajudou a me aceitar. As pessoas começaram a me elogiar, dizer que era linda. O Instagram me levou para um mundo que achava que não iria, de a sociedade me aceitar.

E o convite para ser capa de revista? Recebi o convite pelo Instagram da Glamour. Fiquei meio na dúvida. Sabe quando você desconfia que pode ser um fake tirando sarro da sua cara? Quando deu tudo certo e eu fui... nunca achei que estaria em uma capa de revista internacional. Foi muito bom ver profissionais me falarem que estava no caminho certo como mulher, de aceitação. Só eu sei o que passei: achar ruim ser negra, ser deficiente. Ao longo da caminhada estou tendo essas respostas e percebendo que nasci com algum propósito. 

Ficou nervosa com as fotos? No começo. Estava a Rafa do judô (Rafaela Silva), tinha uma menina do futebol e vi que só tinha mulher top lá. Mas quando me chamaram não precisei ensaiar. Foi como chegar no campo e lançar. Cheguei lá e fui fazendo as poses. Perguntava, posso fazer isso: pode. E foi super rápido.

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Você consegue viver do esporte? Consigo. Fiquei um ano sem receber bolsa pódio, mas pelo andamento vou voltar a receber novamente. Tenho o patrocínio da Caixa. Desde quando entrei no esporte tive muita sorte. Sempre consegui viver só do esporte, graças a Deus, porque não sei fazer outra coisa. 

E depois do esporte?

Aí tento virar modelo, blogueira, não sei. Hoje vejo a vida com todas as portas abertas. Então existem muitas possibilidades. Vamos ver.

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