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Desejo desesperado

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Por Redação
Atualização:

Não sei se o fato de estar há dois meses enfurnado num estúdio do Rio, gastando as madrugadas para gravar um novo disco, fez com que eu não esteja sacando a mais recente onda dos noticiários. Com sinceridade pergunto: será que sou o único que não está entendendo essa "febre" que acometeu a imprensa na louvação ao surgimento do Neymar? Até a bênção do apóstolo Tostão ele já recebeu. Se eu bem entendi, ele jogou apenas três partidas e fez seu primeiro gol como profissional no último domingo. Um gol que tem o valor idêntico ao de qualquer outro que estufa a rede, mas ficou longe de ter cravado na memória o traço impensável e descomunal de uma jogada genial - foi um simples gol de cabeça, igualzinho ao que qualquer condenável cabeça-de-bagre faria. Não consegui ver nos lances destacados de sua atuação decisiva para a vitória do Santos no jogo contra o Oeste razão para esse frisson todo que já lhe rende precoce glória. Soube agora que Neymar vinha sendo cultivado como promessa há algum tempo. Desde os 12 anos ele encanta seus pupilos e patrocinadores com jogadas impressionantes e irresistíveis. Acredito que certas habilidades são natas, nascem no berço, na mamada da chupeta, antes mesmo de aprendermos o bê-á-bá. Não sei onde andou a minha cabeça esse tempo que não prestou atenção no talento insinuante de Neymar - novidade rara que goza do raríssimo aval do nove de Guadalajara. Sei que há muito tempo o Brasil passou a aceitar essa venda infame de jogadores novos como bezerros. O inescrupuloso mercado tem apetite voraz e obsessão pelo lucro. Quanto mais cedo vislumbrar uma oportunidade, melhor será o negócio - ele será mais barato. E foi dessa forma que a exportação de jogadores chegou a esse grau estapafúrdio, parecido com a prostituição infantil, o abuso de menores, a pedofilia. E o mais grave é que essa irresponsabilidade não só contaminou a imprensa como modelou a ótica da torcida. Acredito que Neymar seja mais do que um jogador talentoso, e torço para que ele possa de fato se consolidar como um jogador especial. Mas não seria melhor esperar que ele primeiro aprenda o que é ser um profissional? A distância que separa o jogador do craque é um longo caminho. Quem não se lembra do tape caseiro, muito difundido pela televisão, do Ronaldinho Gaúcho com 7 ou 8 anos de idade, arrebentando numa partida de futebol de salão? O assombroso talento estava ali indicado, e o tempo comprovou a insinuação que já o destacava de forma extraordinária. Talvez Ronaldinho Gaúcho seja o melhor exemplo de um destino que mostrou o quanto é rápida a trajetória atual de um gênio - ele alcançou os píncaros da glória da mesma maneira vertiginosa com que despencou. Hoje, com apenas 28 anos, o gênio parece viver o inverso da glória, exibindo um desinteresse prematuro e descabido. A absurda atenção que estão dando a Neymar me choca. Assisti ao jogo do Santos contra o Mogi Mirim. Do pipoqueiro ao narrador, o gol do debutante Neymar foi gritado como se fosse um gol do Pelé. O próprio menino comemorou esse feito repetindo, corajosa ou ingenuamente, o gesto de seu ídolo. Não estou aqui para desconfiar nem para duvidar do talento desse jovem atleta. Pelo contrário, sou um crédulo, um otimista que acredita no homem mais do que na sua sina. O destino desse menino deveria temer o enigma do futuro, e torná-lo desafio. Mas sobre seus ombros já despenca a responsabilidade de ter de compensar com seu êxito o fracasso que não se esconde por trás do nosso desejo desesperado.

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