Publicidade

Ele era treinador e policial em Minneapolis. Onde traçaria o limite entre os dois trabalhos?

Enquanto sua cidade luta contra a pandemia e as feridas expostas pela morte de George Floyd, Charles Adams encarna o espírito das pessoas comuns que tentam fazer a diferença

PUBLICIDADE

Por Kurt Streeter
Atualização:

No trabalho e nas horas vagas, navegando pela correnteza da raça e da reconciliação, Charles Adams se orgulhava de manter um otimismo tranquilo. Mas, numa noite dolorosa desta primavera, quando sua Minneapolis explodiu de raiva e ele se preparou para enfrentar os manifestantes com seu equipamento de tropa de choque, o medo o consumiu.

Era um veterano com vinte anos na força policial, um policial afro-americano que tentava mudar as coisas por dentro. E era também o técnico de um time de futebol americano, campeão estadual de um bairro pobre e negro, inabalável pastor para seus jogadores. Quanto mais o céu escurecia, mais temia por eles. Por onde andavam? Estavam seguros?

Charles Adams encarna o espírito das pessoas comuns que tentam fazer a diferença Foto: Andrea Ellen Reed/New York Times

PUBLICIDADE

Ele temia por si mesmo. Seu uniforme fazia dele um alvo. O protetor facial e a máscara de gás escondiam sua identidade das multidões furiosas, obscurecendo a figura amada que ele sempre fora em vastas regiões da cidade.

Três dias antes, outro policial de Minneapolis, Derek Chauvin, havia usado o joelho para tirar a vida de George Floyd, cidadão negro acusado de tentar usar uma nota falsa para comprar cigarros. A morte estarreceu Adams. Ele podia se ver em Floyd, homem de ombros largos que fora uma estrela do futebol e do basquete no colégio.

Adams tomou a morte de Floyd como resultado de um abuso de poder que ia contra tudo o que ele defendia. No momento em que viu a cena no vídeo, soube que a cidade entraria em convulsão. Perto dali, edifícios queimaram e os policiais se organizaram. De pé, do lado de fora de uma viatura, Adams se preparava para entrar no conflito. Mas, primeiro, ele precisava falar com seus jogadores, os Polars da escola Minneapolis North High. Ele abriu o celular e os chamou pelo Zoom.

“Tenho que ver seus rostos antes de subir aqui”, disse a eles. “Tenho que ver vocês”. "Treinador, o senhor vai ficar bem", afirmaram eles, as vozes embargadas de emoção. Era seu jeito de animá-lo, como ele sempre fizera com o time.

“Antes de ir para as ruas, tenho que dizer uma coisa a vocês”, respondeu Adams. “Por favor saibam que vocês são importantes para mim. Não sei o que vai acontecer esta noite. Não sei se vou voltar a ver vocês de novo”.

Publicidade

Ele precisava de seus jogadores naquela noite, mais do que nunca. “Junto com minha família, os garotos que ajudo, eles me dão um propósito maior”, disse Adams. “Eles também me ajudaram a me salvar, e aquela noite foi a prova maior disso”.

Os rapazes também precisavam dele. “Nós só queríamos ter notícias dele”, disse Zach Yeager, o quarterback do time. “Ele nos mostra o caminho e se doa muito para nós. Foi bom contar com ele quando tudo começou a explodir na cidade”.

Adams, 40 anos, voz de barítono, foi criado no norte de Minneapolis, onde ruas repletas de árvores e casas modestas mal disfarçam a pobreza enraizada e as piores batalhas de gangues da cidade.

Adams podia ter deixado o bairro para trás. Mas nunca o abandonou. Apesar de todos os problemas, amava seu ardor, sua aspereza. Como policial, ele se tornou uma referência. “Uma das rochas desta comunidade”, disse um pastor local.

PUBLICIDADE

Quando Adams decidiu virar técnico do time do colégio no seu tempo livre, ele o fez em sua complicada alma mater, a escola Minneapolis North, a quatro quarteirões da casa onde passara a infância. Ele transformou um time fraco em campeão, com uma liderança impulsionada por sua habilidade de se conectar com as pessoas.

Agora, enquanto a cidade luta para enfrentar a pandemia de coronavírus e curar as feridas expostas pela morte de Floyd, Adams continua firme. Seu trabalho é uma parábola, um testemunho do poder das pessoas comuns que se dedicam às comunidades que sofrem sob tempos difíceis. “De um jeito ou de outro”, disse ele, “estarei aqui para o norte de Minneapolis, estarei aqui para os garotos, de um jeito ou de outro”. 

Cuidando da lei e do time

Publicidade

Ele era policial antes de se fazer treinador. Adams seguiu os passos de seu pai, policial veterano de Minneapolis que crescera enfrentando os abusos da polícia nos conjuntos habitacionais da cidade durante as décadas de 1960 e 1970, mas depois se juntou à força para tentar mudá-la por dentro.

Assim como o pai, Adams entrou na polícia ciente dos problemas que enfrentaria, trabalhando dentro de um departamento com poucas pessoas parecidas com ele. Seus olhos também estavam abertos para o difícil equilíbrio que os policiais negros são forçados a encontrar num mundo dividido pelo racismo.

“Quando tiro o uniforme azul, sou igual a qualquer outro irmão nos Estados Unidos, enfrento os mesmos problemas”, disse ele. “Também vejo as coisas assim: só porque estou com esse uniforme não significa que não sei de onde sou. Antes de tudo, sou preto, esteja de azul ou não”.

Apesar de tudo, ele adorava ser policial, especialmente na sua comunidade. E era bom nisso. “O cara ficava super tranquilo em todas as situações”, disse Todd Kurth, ex-parceiro de patrulha que comentou como a simpatia e o sorriso largo de Adams conquistavam até mesmo os mais desconfiados. “Ele conseguia ser firme quando precisava, sem dúvidas, mas também tinha a capacidade de conquistar as pessoas e neutralizar as situações difíceis. Ele sentia uma verdadeira necessidade de ajudar”. Foi essa necessidade que o levou de volta à North High, onde se formara no final dos anos 1990. Dez anos atrás, Adams foi transferido para uma unidade que funcionava dentro das escolas públicas. Ele pediu para ficar lotado exclusivamente na North High. A escola mudara muito desde a sua formatura. O campus que antes recebia 1.400 alunos agora tinha cerca de 100. As autoridades distritais sempre falavam em fechá-la. Mas uma coisa continuava igual: os times de basquete eram de primeira linha, o time de futebol americano, decididamente, não.

Não demorou muito para Adams assumir papéis duplos. Policial escolar e técnico de futebol americano. Eram cerca de duas dúzias de jogadores quando ele começou. A camaradagem era pouca. O moral, muito baixo. Em 2010, primeira temporada de Adams, os Polars conseguiram três vitórias. No ano seguinte, nenhuma.

Adams pediu ao pai que o ajudasse a treinar a defesa. Ele convenceu alguns outros policiais a se juntarem na condição de assistentes. Nada deu certo. “Estávamos levando uma surra atrás da outra”, disse Adams. “Mas ele não desistia dos garotos”, disse Beulah Verdell, enfermeira que é assistente na North desde a década de 1990.

Verdell disse que Adams provou seu valor desde o início, mostrando que se preocupava mais com o desempenho dos jogadores fora do campo do que com qualquer outra coisa. “Dessa forma, ele cobrava os jogadores em campo, e eles ouviam”. Ela acrescentou: “Adams dizia: ‘Vamos ganhar e ganhar muito’. Muitos não acreditaram, mas veja o que aconteceu”.

Publicidade

Treinador e conselheiro

Os Polars logo começaram a vencer. Depois de três temporadas, já estavam entre os melhores do estado. Em 2015, perderam o jogo do título de Minnesota para uma escola menor.

No ano seguinte, ganharam tudo. Viraram o primeiro time de uma escola da cidade de Minneapolis a ganhar o campeonato estadual de futebol americano desde 1977.

Desde então, a North vem disputando o título todos os anos. Ainda assim, existem desafios contínuos, nem todos relacionados aos jogos. A equipe muitas vezes precisa pedir doações para os equipamentos – meias, protetores bucais. E, às vezes, os jogadores cedem ao fascínio das ruas.

Pouco depois de a North ter vencido o campeonato estadual, um dos running backs do time foi acusado de envolvimento num tiroteio. Antes de ser preso, ele foi à escola e se entregou ao único policial em quem confiava: Adams.

“Não posso dizer a um garoto que o amo só quando tudo está indo bem, quando ele nos ajuda a ganhar campeonatos”, disse Adams, lembrando-se da prisão e das lágrimas que ele e seu jogador problemático derramaram naquele dia. “Tenho que dizer a ele que o amo também quando a coisa fica ruim. É assim que funciona. É assim que toda essa equipe funciona”.

Tudo estava preparado para mais um sucesso neste outono. Os Polars vinham de uma derrota dolorosa no jogo do título no ano passado, mas agora eram um dos favoritos, mais uma vez. Aí veio a pandemia. E, pouco depois, a noite em que Adams abriu o Facebook e viu a gravação do vídeo do joelho de Chauvin no pescoço de George Floyd.

Publicidade

“O certo é o certo e o errado é o errado”, disse Adams. “E aquele negócio era muito errado. No momento em que vi aquele vídeo, entendi que ele nos faria retroceder dez, vinte anos em termos de confiança”.

Ele conhecia Chauvin. Não eram amigos, mas começaram na polícia quase ao mesmo tempo. Em seus primeiros anos, lembrou Adams, ele e Chauvin fizeram parte de um grupo de policiais que levou um grupo de crianças negras para pescar. Os detalhes daquela viagem já haviam se apagado, mas ele se lembra da reação das crianças a Chauvin.

“Ele parecia meio estranho”, disse Adams. “Socialmente estranho. Não sociável. Dá para ver que tem alguma coisa nos olhos dele naquele vídeo do pescoço de Floyd. Controle, poder, cabeça-dura”.

Adams adorava ser policial, mas sabia que na força ainda havia membros como Chauvin, que foi demitido e agora enfrenta acusações de homicídio culposo. Ele foi libertado mediante pagamento de uma fiança de 1 milhão de dólares este mês.

Os jogadores da North também sabiam disso. Fora Adams e os quatro policiais que se ofereceram para ajudar a treinar o time, a polícia deixava a maioria dos jogadores inquietos. C.J. Brown me contou sobre a vez em que foi parado, algemado e intimidado. Um caso de erro de identificação.

“Não fui o único do time a ser tratado assim”, disse Brown. “É uma coisa que me deixa triste. Os jovens das outras comunidades podem fazer o que quiserem, e a polícia os trata muito bem. Mas os jovens daqui são da minha cor, ou mais pretos, então a coisa é diferente”.

Inquietação e desconfiança

Publicidade

As consequências da morte de Floyd foram imediatas em Minneapolis. E atingiram Adams diretamente. Para ele, o trabalho como policial na North era tão importante quanto treinar o time de futebol. Ele estava dentro da escola todos os dias, era mais um tio e conselheiro tranquilizador do que um policial. Almoçava com os alunos e não andava armado. Em vez de uniforme, vestia calça cáqui e uma camisa polo.

Em junho, o conselho escolar da cidade votou pelo encerramento do contrato com o Departamento de Polícia. Adams poderia continuar como treinador, mas não trabalhar como policial dentro da escola.

Pela primeira vez em dez anos, Adams estava de volta a uma viatura, patrulhando o norte da cidade. Ele conseguiu ser colocado no turno da manhã, o que permitia que ele estivesse no desgastado campo de treinamento da escola à tarde, para supervisionar os treinos de verão.

Depois da morte de Floyd e com os ritmos da vida cotidiana transtornados por meses de pandemia, as ruas do norte de Minneapolis entraram em convulsão. De sua viatura, Adams podia sentir a tensão. Seus dias de repente se encheram de chamados por denúncias de violência doméstica, overdoses de heroína, tiroteios e assaltos.

Adams mal podia esperar para chegar à escola e estar com sua equipe, onde costumava treinar sentado numa cadeira no gramado, afastado, mantendo a distância social para evitar o vírus. No final de uma tarde de agosto, ele se levantou para dar ao seu time a notícia que ninguém queria ouvir: por causa da pandemia, os funcionários da escola suspenderam o futebol até a primavera.

Os jogadores ficaram em silêncio, assimilando o que tinham acabado de ouvir. Adams quebrou o gelo. Os Polars iriam continuar, mesmo que não estivessem jogando. “Temos que treinar”, disse ele. Não apenas para mantê-los em forma, mas também para mantê-los seguros.

“Dar a vocês mais dois ou três meses quando vocês estão correndo por aí, nessa vizinhança cheia de crime, e vocês não estão aqui conosco, e não estamos aqui vigiando todos vocês, isso é uma receita para o desastre,” disse Adams.

Publicidade

Suas palavras destacaram a maneira como ele enfrentava a pandemia. Ele conhecia os terríveis riscos à saúde, mas se preocupava com uma outra realidade gritante: os garotos da vizinhança – em meio ao crescente número de tiroteios de gangues, escolas fechadas e programas para jovens detidos – se sentiam cada vez mais sozinhos e desesperados. Assim como outros treinadores do ensino médio, ele fez de tudo para aplicar os cuidados necessários para liderar seu time durante a pandemia – como máscaras e distanciamento – porque via o futebol como uma tábua de salvação.

As semanas foram passando. E vieram mais notícias ruins. Adams adoeceu com o coronavírus. Percebeu que se infectara durante o serviço, muitas vezes forçado a manter contato próximo com desconhecidos. O vírus o deixou com febre e o que parecia uma gripe terrível, mas ele se recuperou numas três semanas.

Numa reviravolta estranha, Adams pouco depois recebeu um telefonema dos Minnesota Twins. Eles haviam conhecido Adams quando ele visitara o escritório da equipe para ajudar a dar uma atualização sobre o Departamento de Polícia depois da morte de Floyd e das semanas de protesto.

Surpreendidos pela paixão de Adams por sua comunidade e por seus anos na polícia, os Twins fizeram uma oferta de trabalho: diretor de segurança da equipe. A oferta aumentaria seu salário e o tiraria das ruas, daria a ele uma nova perspectiva. Ele só tinha um pedido ao Twins: ele precisava de um horário que lhe permitisse continuar o trabalho como treinador. As autoridades estaduais de esportes haviam mudado de ideia e acabaram autorizando uma temporada de futebol mais curta no outono.

Adams não aceitaria o emprego dos Twins se isso significasse desistir do futebol da North, nesta temporada ou no futuro. Depois de ter certeza de que poderia continuar dirigindo sua equipe, Adams fez algo que nunca havia imaginado antes deste ano desafiador: deixou o Departamento de Polícia. “Uma decisão difícil”, disse ele. “Mas o trabalho da polícia não parecia mais o mesmo. Tinha chegado a hora de mudar”.

O que não mudou foi o futebol. Agora era 16 de outubro, um dia fresco e seco. Os Polars se preparavam para jogar sua primeira partida da temporada em casa, contra uma escola católica dos subúrbios.

Seria uma noite incomum, de celebração. O futebol estava de volta e, durante o verão, o distrito escolar terminara de renovar o campo de futebol da North. O time não podia ter torcedores nas arquibancadas por causa do vírus, mas, pela primeira vez em anos, os Polars jogariam em casa, sob os holofotes.

Publicidade

Na preparação para o jogo, os Polars se reuniram na North, se vestiram e caminharam, como fazem tradicionalmente, pelas ruas cheias de folhas. Adams veio atrás, sozinho, vestindo seu moletom azul com o capuz levantado. Parecia pensativo, vasculhando as memórias dos últimos sete meses e todos os seus problemas. A pandemia. George Floyd. A noite em que fora para o combate e ligou para seus jogadores, com medo de não os ver novamente.

Parecia estar rezando. Apesar da loucura do mundo, lá estava ele, a caminho do banco, para orientar os jogadores que tanto amava no norte de Minneapolis, o bairro que ele sempre chamará de lar./Tradução de Renato Prelorentzou

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.