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Flor de cáctus

Boleiros

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Por Redação
Atualização:

Há coisas que podem levar uma vida pra acontecer. São eventos raros que destoam na expectativa regular do cotidiano. Fui colecionador de cactáceas. Os cáctus me atraíram pela forma inusitada, pelo aspecto rude composto em geométrica concisão. Vegetal sem folhas, é como um container de água escondida e protegida por espinhos contra a aridez do clima e contra a sede dos desesperados. Contrastando com sua aparência deselegante, a natureza enfeitou a planta com as mais belas flores que existem. Nos muitos anos que passei descobrindo a variedade das espécies, fui conhecendo a vastidão do repertório de suas formas adquirindo plantas, coletando espécies pelas viagens que fiz por esse mundão a fora, comprando livros pra entender e catalogar os vasos que enfeitavam meu jardim. Uma dessas plantas passou anos em impressionante economia de novidades. Crescia um tanto de vez em quando, mas nada acontecia no seu mutismo formal e pré-histórico: enquanto nos outros xaxins, ao longo das estações, cada planta explodia em cores na época em que suas flores se abriam, aquele cáctus insistia em não se revelar, não mostrar nada. Até que, num dia de um dezembro à toa, surgiu um único e escasso botão, que foi se desenvolvendo no farto calor do nosso verão, e certa noite desabrochou numa flor gigantesca, branca e perfumada, tal qual um sol alvo e noturno, uma lua cheia despetalada. Foram 15 anos de espera. O que pretendemos na vida é domá-la de tal modo que ela não nos falte com o mínimo daquilo que esperamos e precisamos. Deve ser por isso que acabamos por fazer da vida um colcha horizontal de compromissos e regras, querendo sempre nos cercar de garantias contra o imprevisto do futuro. Nada mais humano, nada mais racional, nada mais típico para o homem que vive civilizadamente em sociedade. Só que guardamos dentro de nós, num canto ermo, uma vaga para a surpresa, para o susto extraordinário. Rotina é bom, dá segurança, mas também pode afogar o espírito em tédio e vulgaridade. É sempre bom saber que uma hora seremos brindados com a febre de uma paixão irresistível ou por um eclipse lunar total. É bom saber que não veremos toda hora um cometa riscando o céu. Certos desejos não devem ser realizados em qualquer ocasião. Talvez seja por isso que me encante tanto o futebol. Por mais que a torcida viva na obsessiva busca das vitória, a intensidade da força não se resolve em controle ou poder. Pelo contrário, o sabor da comemoração de uma vitória vem do fato dela não se consumar por antecedência. O jogo só acaba quando termina. Saber que a nossa vontade não rege o universo é tão frustrante quanto tranqüilizador. Não temos a obrigação de comandar aquilo que vai além do nosso perímetro físico. Temos direito, também, a assistir ao que a vida nos prepara. Quando o jogo de domingo terminou, liguei para o meu pai e, em seguida, para meu padrinho, tio Cassiano. Na semana que antecedeu a conquista ouvi de ambos a preocupação de reviver a decepção que os marcou de forma traumática: guardavam o amargo dissabor de 47 (o São Paulo precisava de um ponto em 6 e não conseguiu marcá-lo), e outras inúmeras derrotas que nunca os havia permitido soltar o grito irrevogável da confirmação: "Somos tricampeões." A ambos dedico este artigo pela satisfação de ter vivido com eles a conquista de 3 títulos seguidos, raros como a flor do cáctus que nunca mais brotou.

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