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Futebol aos pedaços

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Por Ugo Giorgetti
Atualização:

Eloide dos Santos tem 59 anos, mora no Jardim Ângela e está rindo de orelha a orelha. É santista, supersantista diria, maravilhado pelos últimos resultados dos garotos da Vila. Anda pelo escritório com sorriso confiante, sempre com um jornal por perto. Na menor folga, abre o jornal na página esportiva e procura notícias do Santos. Ouve também programas de rádio. Enfim, sabe tudo. Espera um grande resultado para o clássico de hoje na Vila. No fundo, acha que o Palmeiras não vai segurar a molecada. Vamos ver. Observando e convivendo com Eloide constantemente nos últimos muitos anos, pude, através dele, ver as transformações que vêm se operando no futebol. Eloide, apesar de tão apegado ao Santos, é um torcedor virtual. Ou torcedor de um futebol quase imaginário. Faz trinta anos que não vai a um estádio. Faz trinta anos que não vê o Santos em campo, desde os tempos longínquos em que morava em Paraisópolis, favela perto do Morumbi. Esse acaso geográfico permitia a ele ir ao estádio de vez em quando. Donde eu concluo que Eloide não vê futebol completo, como deve ser visto e apreciado, há muito tempo. O que ele vê, recorrendo a todos os meios possíveis e imagináveis, são fragmentos de futebol. Pedaços. Partes de jogo. A repetição de um gol aqui, uma entrevista de rádio ali, um programa de esportes, uma foto de jornal. Mesmo quando consegue ver o jogo completo, aos domingos pela tevê, não é a mesma coisa. Não é o mesmo que ver futebol no campo, onde se vê tudo, não só o que o diretor de tevê resolve mostrar. Acho até que ele já se acostumou com essa nova forma e talvez preencha com sua imaginação o que não consegue ver por inteiro. É curioso observá-lo, por exemplo, quando a seleção brasileira atua, naqueles jogos loucos no meio da semana, em horário de trabalho. Na menor pausa ele liga a tevê, assiste a dois, três minutos e, claro, é interrompido por alguma tarefa. Não se deprime. Desliga sem problema e só volta a ligar uns quarenta minutos depois. Assiste a mais dois ou três lances e abandona pelo trabalho. É quase um tique, uma ação automática. Na medida em que progrediu de vida, contraditoriamente, ficou mais difícil dedicar-se ao seu divertimento mais querido. Tem casa própria, computador, celular, é uma pessoa que tem uma vida material decente. Mas, de sua casa, no Jardim Ângela, até Pinheiros, são duas horas e meia no miserável transporte público da cidade de São Paulo. Digamos que, num delírio, resolva ir a um jogo do Santos no Pacaembu, começando às 21h50. Voltar pra casa e depois ir ao estádio, nem pensar. Tem, então, que matar umas três horas e meia até o começo do jogo. E quando termina ir pra casa e chegar aí pelas 2,30 da manhã. Com o horário das 21,50 para transmissão dos jogos Eloide não consegue assistir a um jogo inteiro nem em casa, pela tevê. No fim do primeiro tempo, pelas 11 horas, desliga e vai dormir, porque tem que levantar muito cedo. O que me leva a uma pergunta: fora os que moram ao lado dos estádios, fora quem tem carro, fora quem não tem que trabalhar, quem vai ao futebol? Seria muito proveitosa uma pesquisa a respeito, tivesse alguém qualquer interesse. Enquanto isso, a maioria que trabalha curte futebol aos pedaços, exatamente como o Eloide. Muitas vezes ele nem se importou de não ir ao estádio. Mas agora, com Robinho, Neymar, Ganso?

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