Publicidade

João Nelson e seu tio-avô

PUBLICIDADE

Por Ugo Giorgetti
Atualização:

O tio-avô de João Nelson amava o futebol. O velho era uma lenda na família e ele cresceu ouvindo suas histórias. No tempo do tio-avô, São Paulo era cheia de campos de várzea. Jogava-se bola em toda a cidade. Alguns times, porém, eram mais pobres e atravessavam dificuldades. Um dia o velho começou por fornecer um jogo de camisas novas para um desses times do seu bairro. O pessoal do time se mostrou muito agradecido. O bom homem ficou tão comovido com aquela gratidão que, para outro clube, ofereceu o caminhão de um amigo para servir de transporte para os jogos. E assim, de boa ação em boa ação, finalmente passou a atender a todos. Para uns fornecia um par de chuteiras, para outros um vistoso agasalho. Porque o tio-avô de João Nelson amava o futebol. É claro que um homem desses merecia retribuição à altura. Elegeu-se primeiro vereador, e depois, por muitas vezes, deputado estadual. Foi líder da maioria mais de uma vez e até vice-prefeito. Morreu rico e, embora fosse praticamente analfabeto, hoje é nome de uma escola. Com essa lição de vida sempre em mente João Nelson também se aproximou do futebol. Mas os tempos eram outros e ele permaneceu por um bom período numa espécie de limbo, sem saber o que fazer com tanta experiência familiar. Um dia chegou, porém, em que o talento acumulado pôde começar de novo a ser usado. João Nelson descobriu que poderia ser um feliz proprietário de um jogador de futebol. Sim, poderia comprar um garoto promissor e revendê-lo para algum clube, reservando-se evidentemente o lucro natural de qualquer transação comercial. Tendo como modelo a conduta do velho tio-avô, lançou-se em campo. Passou a oferecer, para pais necessitados, desde cestas básicas até casas de 15 metros quadrados de alvenaria, em troca dos direitos sobre revenda do futuro jogador. Teve de batalhar intensamente, convencendo pais e responsáveis que suas vidas poderiam mudar e que deveriam confiar nele. E também escolhendo clubes e treinadores adequados. Como o tio-avô, foi bem-sucedido. Aos poucos fez associações com outros empreendedores, clubes e entidades. Com muita imaginação consegue sempre compor negócios intrincados. De certos rapazes é proprietário apenas de um terço. De outros tem a metade, e de alguns é o único dono. De vez em quando alguma transação particularmente turbulenta se complica e acaba na imprensa, principalmente quando vários empreendedores se apresentam como donos do mesmo jogador. João Nelson, porém, cujo palavra favorita é "transparência", não se abate. Dá alguns telefonemas e tudo se resolve: ele pode contar com os amigos certos que se orgulha de ter feito. Por esse exemplo, no entanto, se vê que a profissão de João Nelson não é um mar de rosas. Há muito sacrifício, até financeiro. Sim, porque a maioria desses rapazes fica pelo caminho, não consegue nada no futebol e volta para seus destinos miseráveis. Nesse caso perde-se o investimento. E, repito, infelizmente é o que acontece com a maioria. Mas ele procura não pensar nesses, e sim nos poucos, mesmo um único, que consegue ir para a Europa e compensar todas as perdas. João Nelson não pode se queixar, é hoje um homem rico. De vez em quando pensa no tio-avô e não pode impedir que uma lágrima saudosa lhe venha logo aos olhos. Onde quer que esteja, o velho deve estar orgulhoso dele.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.