Um erro de avaliação médica na jogadora Alessandra, a Neneca, de 16 anos, ocasionou sua desconvocação da seleção brasileira infanto-juvenil feminina de vôlei e, por pouco, não acabou com a carreira daquela que despontou como uma promessa na modalidade. O laudo emitido pela Confederação Brasileira de Vôlei (CBV) afirmou que a atleta é portadora do traço falciforme, que poderia levá-la à morte súbita, mas a característica não provoca uma doença conhecida por "anemia falciforme", capaz de privar um indivíduo de praticar esportes profissionalmente. O desconhecimento sobre as diferenças entre os indivíduos portadores da anemia e do traço falciforme tem levado vários especialistas a tratarem os dois quadros igualmente. No laudo da CBV, o hematologista Wolmar Alcântara Pulcheri escreveu que "há até casos de morte súbita em portadores de traço falciforme submetidos a esforços físicos extenuantes". O presidente da Câmara Técnica de Anemia Falciforme da Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Paulo Ivo, contestou enfaticamente as informações do laudo da CBV e salientou que ele "não é verdadeiro". "Existe na realidade um mito sobre o traço falciforme. Até hoje recebo pacientes com traço encaminhados por outros médicos como se fossem portadores da doença", disse Paulo Ivo, frisando que não há possibilidade de pessoas desenvolverem a anemia a partir do traço ou deixarem de exercer qualquer tipo de atividade física. "O traço é completamente diferente da anemia. Quem tem traço falcêmico no sangue é perfeitamente normal." Neneca começou a jogar vôlei no Tijuca Tênis Club aos 11 anos. Seu técnico, Júlio Kunz, destacou sua qualidade de saltadora e ofensiva, apesar de sua estatura mediana, 1,73m. De família humilde, nasceu no morro da Mineira, uma favela no centro do Rio, dominada pelo tráfico de drogas, onde os tiroteios são constantes, e vive com sua mãe, que é diarista, uma tia-avó e duas irmãs. "Pensei em abandonar a carreira, mas quando cheguei ao Rio e soube que não era grave como me disseram virei logo a página", contou a oposto Neneca, que foi convocada pela primeira vez este ano e treinou por um mês e meio no Centro de Desenvolvimento de Vôlei, em Saquarema, na região dos Lagos. "Acho que esse problema não vai afetar minha imagem. Espero é servir de exemplo para outras atletas também lutarem quando este tipo de coisa acontecer." No início da noite desta quinta-feira, o presidente da CBV, Ary Graça, encaminhou um ofício ao deputado estadual Carlos Minc (PT), que auxiliou a atleta, alegando que a entidade seguiu o conselho de seu departamento médico. O dirigente afirmou que se o político assumisse "em forma pessoal e por meio de carta lavrada e registrada em cartório, a responsabilidade por quaisquer conseqüências (doença, lesão, morte, etc.) que vier a acontecer com a atleta", ela estaria "em forma imediata" reintegrada à seleção. Como resposta, o deputado assumiu a responsabilidade pela atleta, juntamente com o técnico Kunz e o médico Paulo Ivo. Ressaltou ainda que os médicos da CBV cometeram uma "falha de interpretação" e o traço falciforme "não incapacita ninguém para o esporte ou trabalho". O traço falciforme é caracteristico de indivíduos que apresentam um dos gens, responsáveis pela produção de hemácias, mutável. É muito comum em negros ou afrodescendentes, mas não chega a ser um problema exclusivamente deles, podendo atingir pessoas de outras raças. O Ministério da Saúde dos Estados Unidos, por exemplo, proíbe que qualquer cidadão seja impedido de exercer esporte de alto rendimento por ter traço falciforme em seu sangue.