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Pequim-2022 termina ofuscada por doping, tensões na Europa e ansiedade sobre o futuro do esporte

Organização do evento insistiu que os Jogos de Inverno não tinham a ver com política, mas disputas acabaram assombradas por questões além das provas

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Por Steven Lee Myers e Kevin Draper
Atualização:

O tempo todo, as autoridades chinesas insistiram que as Olimpíadas não tinham nada a ver com política, mas sim com esportes. Mas, no fim das contas, a controvérsia e o escândalo assombraram também os esportes. Apesar de todos os esforços da China para realizar os Jogos de Inverno com espírito festivo, os de Pequim 2022 se desenrolaram como um espetáculo sem alegria: constrangidos por um desastre de saúde global, repletos de tensões geopolíticas, manchados por novas acusações de doping e ofuscados pela crise na Ucrânia. Os atletas desfilaram pelo estádio Ninho de Pássaro em Pequim na noite de domingo ao som da Nona Sinfonia de Beethoven, encerrando a Olimpíada mais controversa em anos, com uma exibição das tradicionais lanternas vermelhas e uma explosão final de fogos de artifício que iluminaram uma noite fria e clara.

Delegação da China desfila no Ninho de Pássaro durante a cerimônia de encerramento dos Jogos de Inverno Foto: Anne-Christine POUJOULAT / AFP

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Em meio à pompa da cerimônia de encerramento, a China pôde comemorar a realização dos Jogos no prazo, apesar de tudo. Mas é um sucesso em relação a expectativas bem baixas: só evitar um desastre total. A memória mais indelével desses Jogos Olímpicos de Inverno – ao lado das imagens de trabalhadores e voluntários olímpicos vestidos com roupas de proteção – provavelmente será a de uma patinadora russa de 15 anos de idade caindo no gelo depois de ser autorizada a competir, apesar de um teste mostrar vestígios de um medicamento proibido.

A patinadora, Kamila Valieva, começou a chorar depois de uma performance sombria e logo depois foi repreendida por sua treinadora, deixando organizadores e espectadores refletindo sobre o quanto se exige de atletas que, afinal, ainda são crianças. O Comitê Olímpico Internacional, que passou anos evitando questionamentos sobre a escolha de uma nação autoritária como sede, dedicou grande parte das últimas duas semanas a fugir de controvérsias.

Além de questões preocupantes levantadas pelo episódio Valieva, o COI enfrentou questionamentos sobre as condições de atletas que se isolaram após testar positivo para a covid-19; sobre o destino de Peng Shuai, a tenista e ex-atleta olímpica que acusou um alto funcionário chinês de agressão sexual; sobre a inevitável injeção de política em um evento que deveria se elevar acima da política.]

“O que se pode fazer, além de suspirar?”, disse Orville Schell, diretor do Centro de Relações EUA-China da Asia Society em Nova York. “Uma ocasião tão augusta, destinada a promover a abertura, o espírito esportivo e a solidariedade transnacional, acabou sendo um simulacro de ideal olímpico frágil e fortemente policiado”.

O COI desde então revisou o processo de seleção das cidades-sede, em parte para evitar a chance de mais uma vez fazer uma barganha faustiana como a de sete anos atrás, quando Pequim derrotou Almaty, a antiga capital de outra nação autoritária, o Cazaquistão. Durante a cerimônia de domingo, o prefeito de Pequim, Chen Jining, entregou a bandeira olímpica aos prefeitos de duas cidades italianas, Milão e Cortina d’Ampezzo, que sediarão os Jogos Olímpicos de Inverno de 2026.

Os próximos Jogos de Verão serão em Paris em 2024, Los Angeles em 2028 e Brisbane, na Austrália, em 2032 – lugares onde se espera que questões de direitos humanos não dominem os preparativos. A China se tornou a primeira nação a organizar edições de inverno e verão na mesma cidade, um feito considerado um triunfo do poderio do Partido Comunista. O líder do país, Xi Jinping, compareceu ao encerramento, assim como fizera na abertura há 16 dias, e foi saudado por um rugido tão grande quanto o que se seguiu à entrada da imensa delegação chinesa.

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Os Jogos Olímpicos de Verão de 2008, que aconteceram em muitos dos mesmos locais da capital chinesa, pareciam um pedido de respeito após décadas de pobreza e caos político. Para os críticos da China, estes Jogos de Inverno já pareceram uma ordem por respeito. Autoridades chinesas acusaram os Estados Unidos e outras nações de politizar as Olimpíadas, denunciando o boicote diplomático do presidente Biden como “uma farsa”. No entanto, a China também injetou seus próprios elementos políticos.

Xi se encontrou com o presidente russo, Vladimir Putin, poucas horas antes da cerimônia de abertura, uma demonstração de apoio diante das ameaças ocidentais de retaliar Moscou se suas forças invadirem a Ucrânia.

A China também escolheu para carregar a tocha olímpica um soldado ferido em um confronto mortal na fronteira com a Índia em 2020. A chama olímpica foi acesa por um esquiador cross-country de Xinjiang, província que passa por uma campanha de detenção e reeducação em massa que os Estados Unidos qualificaram como genocida.

Um funcionário do Comitê Organizador de Pequim alertou os participantes para não violarem a regra da Carta Olímpica que proíbe declarações políticas. Outro funcionário a violou reafirmando as reivindicações da China sobre Taiwan, a democracia insular autônoma, e denunciando as críticas às suas políticas em Xinjiang como mentirosas.

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Esses comentários levaram Thomas Bach, presidente do Comitê Olímpico Internacional, a emitir uma repreensão pública aos anfitriões, embora tenha sido leve. A deferência geral do comitê gerou fortes reações dos críticos da China, que disseram que os Jogos faziam uma “lavagem esportiva” nas graves violações de direitos básicos.

Apesar de tudo isso, os esportes brilharam.

A Noruega, nação de apenas cinco milhões de habitantes, repetiu seu extraordinário sucesso nos Jogos Olímpicos de Inverno, liderando o quadro de medalhas com um recorde de 16 ouros e 37 medalhas no total. Eileen Gu, esquiadora de 18 anos de São Francisco que competiu pela China, foi a grande revelação do evento.

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Alguns atletas, focados principalmente em seus esportes, elogiaram os preparativos da China. Nick Baumgartner, o veterano snowboarder americano que, com Lindsey Jacobellis, ganhou uma medalha de ouro no snowboard cross, descreveu os circuitos de montanha a noroeste de Pequim como “incríveis”.

“Vou dizer que, das quatro Olimpíadas em que estive, o capricho e a precisão e a beleza de tudo são uma coisa extraordinária”, disse ele após sua vitória em Zhangjiakou. Os eventos se desenrolaram dentro do que os organizadores chamaram de sistema de “circuito fechado”, que transformou hotéis e locais de eventos em ilhas de um arquipélago olímpico, separado dos chineses comuns por cercas e postos de controle temporários. Dentro desses locais, todas as pessoas faziam testes diários de covid-19.

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Como ferramenta da política de “covid zero” da China, funcionou. Apenas alguns atletas tiveram de ficar de fora das competições e, no final, houve dias em que nenhum teste deu positivo. Muitos atletas aceitaram as medidas. Alguns até as viram como um benefício. “Para ser honesta, você bota o cotonete na boca todo dia, mas tem seu próprio quarto”, disse Meryeta O’Dine, snowboarder canadense que ganhou a medalha de bronze, referindo-se à decisão de não colocar mais de um atleta no mesmo quarto para minimizar a proximidade dos contatos. “Na verdade, foi muito bom”.

Depois do desfile da cerimônia de encerramento, as delegações nacionais permaneceram no piso iluminado do estádio, que parecia uma camada de gelo, como se quisessem fazer o momento durar um pouco mais.

Fora do circuito fechado, o clima em Pequim era outro. Não se deu autorização para nenhum torcedor estrangeiro, e apenas chineses especialmente convidados e selecionados puderam assistir às competições. “É uma Olimpíada de Inverno que deixa a liderança da China feliz”, disse Wu Qiang, analista político independente em Pequim. “Não tem nada a ver com as pessoas comuns.”

Talvez tenha sido resultado da promessa de Xi de criar uma nação de mais de 300 milhões de entusiastas dentro de um país com pouca tradição nos esportes de inverno. Bach, presidente do COI, elogiou essa conquista no domingo. “O legado positivo desses Jogos Olímpicos está garantido”, disse ele.

Mesmo assim, os Jogos ressaltaram as preocupações do movimento olímpico. Para grande parte do mundo, esses Jogos passaram quase despercebidos. A audiência de televisão nos Estados Unidos caiu cerca de 50% em relação às Olimpíadas de Pyeongchang de 2018; houve quedas semelhantes no Canadá, Grã-Bretanha e outros países.

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Ainda não se sabe o que os Jogos vão significar para a própria China. Dentro de outro circuito fechado, o ecossistema de mídia e propaganda do país, a China triunfou. Fora da China, os Jogos provavelmente terão pouco efeito na percepção do mundo. “Conseguir alguma cobertura positiva, ou menos negativa, não se traduz necessariamente na transformação das percepções do público a respeito da China”, disse Maria Repnikova, especialista em soft power chinês da Georgia State University.

Nils van der Poel, patinador de velocidade sueco que ganhou duas medalhas de ouro, disse que foi “terrível” entregar as Olimpíadas à China e se referiu à Alemanha nazista sediando os Jogos em 1936. “Acho extremamente irresponsável dar [as Olimpíadas] a um país que viola os direitos humanos tão descaradamente quanto o regime chinês está fazendo”, disse ele a um jornal.

Em 2008, a realização das Olimpíadas pela China na verdade gerou mais opiniões negativas sobre o país, de acordo com pesquisas globais, já que a atenção internacional lançou luz sobre a natureza do sistema político. Naquela época, muitos se perguntavam se ser anfitrião olímpico induziria alguma mudança positiva no país. Desta vez, poucas pessoas alimentaram tais esperanças. Claire Fu contribuiu com a pesquisa. Keith Bradsher contribuiu com reportagem. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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