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Juiz ladrão

Por UGO GIORGETTI
Atualização:

Em tempos politicamente mais incorretos onde as coisas eram ditas brutalmente e com muito menos temor das consequências, "juiz ladrão" era uma expressão largamente usada no mundo do futebol. Todas as torcidas em todas as arquibancadas dos grandes estádios, em campos de várzea, em jogos nos pátios das escolas, em terrenos baldios onde se jogavam peladas de fim de tarde, a expressão era utilizada a todo momento, mesmo quando não houvesse nenhum juiz. Quando nos terrenos baldios se disputavam jogos onde as regras precisavam ser discutidas a cada lance era comum ouvir: "para de roubar", "vamo pará com esse roubo". Até entre a imprensa especializada, se não havia um claro uso da palavra para classificar certas arbitragens, pelo menos havia alusões vagas, insinuações, ironias e outros indícios de que o "roubo" estava sempre rondando as mentes. Roubo queria dizer que alguém estava mal intencionado e disposto a distorcer as regras para beneficiar uma equipe. Era, portanto, um expediente muito bem vindo quando se tratava de justificar derrotas e fracassos. Com o tempo, como tudo, essa expressão foi sendo cada vez mais evitada até que parece nunca ter existido, parece ter caído em desuso. Hoje seu uso é muito difícil, praticamente impossível. Quando muito ouve-se que tal ou tal equipe foi "prejudicada", ou que o juiz "errou". Estamos em plena época dos processos e das interpelações judiciais. Das multas, punições, castigos e prisões. Por tudo isso, tive um choque muito grande quando vi e ouvi o Ganso, depois da partida com o Corinthians, dizer alto e bom som: "Não foi erro, foi roubo". Quase caí da cadeira. Imediatamente pensei que o mundo ia desabar sobre ele. E desabou. O juiz pretende processá-lo, entidades pretendem puni-lo, o diabo. Até Serginho Chulapa, evocado pelo Ganso num gesto desesperado, talvez um pouco imprudentemente, sentiu-se ligeiramente ofendido pela lembrança e não lhe ofereceu nenhuma solidariedade, ao contrário. Pois bem, eu absolveria o Ganso. Não é possível mais entrevista de jogadores ao fim de partidas decisivas e julgá-los pelo que falam naquele momento. Ganso estava ainda em campo, tinha jogado mal, o time tinha perdido partida importante, o adversário festejando, e decepcionado, nervoso, frustrado, o boleiro se vê frente a um microfone. Via-se perfeitamente pela expressão do jogador quanto a derrota o tinha machucado. É possível controlar os nervos numa circunstância dessas? Quem seria tão frio a ponto de raciocinar e refletir antes de dar uma resposta? Ou os clubes e a federação permitem entrevistas só depois de uns 50 minutos após uma partida, ou a imprensa deixa de entrevistar no campo. Para a imprensa, que vive do impacto, o momento é quando ainda é possível o inesperado. Entrevistas posteriores, como coletivas de treinadores, são de um tédio mortal. O ideal é estar onde o imprevisível pode acontecer. No caso, ninguém esperava a declaração do Ganso. O esperado era alguma resposta, normal, banal, protocolar. Mas veio outra coisa. Eu não esperava, nem o entrevistador. Mas ele estava lá e registrou. Cabe então ao clube proteger seu jogador. De outro modo é quase inevitável situações como a criada pelo Ganso. De qualquer maneira estou do lado dele. O que aconteceu é que, subitamente, no momento menos adequado, veio à tona o que há de mais genuíno no futebol: a infância. Por um momento o profissional famoso de um grande clube não conseguiu fechar todas as barreiras de sua emoção e, por alguma brecha da alma, escapou o moleque de terreno baldio que ele foi. E o moleque reapareceu reagindo a uma derrota à sua velha maneira: "Vamo pará de robá, porra!" Futebol é coisa da infância. E a infância está sempre presente e revive quando menos se espera. Por mim o Ganso já está absolvido. Privação momentânea dos sentidos, acho que é o termo.

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