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Meu limão, meu limoeiro

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Por Redação
Atualização:

Sábado, por conta de uma brecha inesperada na minha agenda de trabalho, resolvi ir ao cinema, de supetão. Fui assistir ao documentário Ninguém Sabe o Duro que eu Dei, de Claudio Manoel, Micael Langer e Calvito Leal, sobre a vida de Wilson Simonal. Me lembro de ouvir muito a música de Simonal na minha tenra infância e, depois, nunca mais. O filme explica o porquê. A história controversa que marcou sua carreira e mudou sua vida é contada pelos diferentes ângulos das divergentes opiniões e posições daqueles que falaram às câmeras. E, de certa forma, também por aqueles que não se pronunciaram - há ausências notáveis. Não vou adiantar o conteúdo do filme nem adentrar numa discussão sobre o complexo enredo. Mas o documentário é formidável e faz jus à memória do excelente cantor e grande artista. Imperdível. O ponto que costuro o filme ao assunto desse artigo é a parte que conta a ida de Simonal ao México em 1970, com a delegação da seleção brasileira que nos traria o caneco. As cenas de Pelé cantando com Simonal na concentração são incríveis, muito expressivas do que foi o Brasil nessa época. A quase ingenuidade dos jogadores sentados na concentração ouvindo Meu limão, meu limoeiro é chocante se comparada ao universo fashion e empresarial que compõem o futebol de hoje em dia. Numa especulação fictícia saberíamos que os agasalhos de grosso algodão nem combinariam com o titânio dos celulares modernos. Mas a infantilidade dos atletas ficava no vestiário, no campo o futebol da nossa seleção definiu o que seriam os parâmetros de qualidade pro futebol no futuro. Embora tenha nascido em 63, me lembro de pouca coisa do ano em que o Brasil conquistou o tri. Tenho vaga memória de estar sentado de cavalinho no ombro do meu pai, na Rua Augusta, em meio à multidão que comemorava a apertada vitória sobre a Inglaterra. E, depois, de uma "chopad" na casa de meu tio-avô Carlos quando já éramos campeões. Ah, me lembro também de ouvir o estouro dos rojões! Mas nada além disso. Claro, vi e revi os jogos e as grandes jogadas inúmeras vezes. Não há quem goste de futebol que não possa descrever de cor o gol de Carlos Alberto. Ou a linda cena dos jogadores festejando outro de Jairzinho. Em câmera lenta. As chuteiras pretas eram muito menos confortáveis do que as coloridas atuais. As camisas de algodão deveriam pesar como chumbo quando encharcadas de chuva ou de suor. A bola talvez ainda fosse de couro. Mas as regras eram as mesmas e só jogavam 11 de cada lado. Se há alguma dose excessiva de nostalgia nesse artigo? Certamente. Mas a saudade se limita ao que ocorria em campo e não nos porões. Nesse ponto, a vida que respira o oxigênio da democracia enterra com repúdio a escuridão dos anos de repressão. Certas coisas são irrespondíveis, outras não. O fato é que não há como fazer o tempo voltar, e certos erros não podem ser reparados nunca. Para a vida não há videotape, não adiantam os efeitos corretivos de posteriores erratas, não há borracha que apague o efeito das palavras. Da seleção de 70 sobra o insuperável talento sempre quando as imagens são repatriadas pela memória. Da ditadura sobraram dores e horrores que não podem ser riscadas da história. Do filme sopra uma angústia de ver quantas vidas foram afetadas por atitudes deliberadas num tempo em que não se tinha liberdade para certas liberdades. É ver e respirar fundo. Cada um de nós carrega o seu fardo nesse injusto mundo.

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