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Música dos estádios

Boleiros

Por Marcos Caetano e marcos.caetano@terra.com.br
Atualização:

Cada país - cada modalidade esportiva, cada torcida - tem uma música que lhe é peculiar. Das batucadas com timbales e túnicas coloridas dos estádios da África ao órgão eletrônico que ecoa pelos sistemas de som das arenas norte-americanas, há um pouco de tudo. Minha noção de esporte está associada à música. Minhas memórias das tardes nos estádios têm uma trilha sonora a acompanhá-las. Os metais da bandinha do Bangu, o tarol da charanga do América, as marchinhas que serviram de trilha sonora para as nossas participações em copas do mundo, a batucada das torcidas e os gritos de guerra dos torcedores são referências poderosas do meu envolvimento com o esporte. Ainda que admire muito a organização dos esportes norte-americanos, confesso que não gosto de ver os torcedores dos Estados Unidos gritando umas poucas frases curtas, sempre a partir de uma ordem dada pelo locutor oficial do estádio ou pelo placar eletrônico. Que eles sejam organizados, tudo bem. Mas é triste constatar que quase toda vez que ouvi um torcedor batendo palmas na terra do Tio Sam foi para acompanhar a musica do órgão eletrônico, que um sujeito toca durante as partidas, como se fosse um pianista de cinema mudo tentando animar um evento silencioso. Gosto da espontaneidade e do fanatismo de brasileiros, ingleses e argentinos quando o assunto é torcer num estádio. É verdade que espanhóis, italianos, franceses, africanos e asiáticos também vibram muito com uma partida de futebol. Mas não dá para negar que Brasil, Argentina e Inglaterra são os países cujos torcedores morrem um pouco durante um jogo. Os torcedores desses três países cantam muito e fazem de seus gritos de guerra a estratégia definitiva para empurrar o time, espantar temores, atrair sorte, provocar os adversários e evitar o risco de infarto que correm todos aqueles que amam loucamente um time, mas preferem torcer calados, ouvindo a batida dos próprios corações. No entanto, quando comparo nossas torcidas às torcidas de Argentina e Inglaterra, concluo que não cultivamos o mesmo sentimento dos nossos rivais do planeta futebol. A razão é objetiva: enquanto ingleses e argentinos cantam, na maior parte do tempo, músicas de louvor aos seus clubes, nós preferimos entoar cânticos de ódio aos torcedores adversários e exaltação à violência. Há vários indícios da crise moral que o Brasil atravessa, mas a degeneração da música nos estádios é, para mim, um dos mais evidentes. Sei que alguns vão me chamar de saudosista e lembrar que as letras do grande sucesso musical do momento entre os jovens, o rap, são cheias de machismo, incitação à violência e rebeldia sem causa. Talvez por isso eu goste mais de jazz do que de rap. Talvez por isso eu seja mesmo saudosista. Só que eu não posso concordar com quem se diverte com um coro que prega a discriminação e a morte dos torcedores adversários, quando poderia pregar a luta pela vitória e o orgulho pelas conquistas do próprio time. Argentinos e ingleses não são santos. Vez por outra, suas músicas descambam para o racismo ou a confrontação. Mas a grande maioria das músicas cantadas por eles - e eles cantam mais alto, com mais paixão e por mais tempo do que nós - têm longas e bem elaboradas letras de exaltação aos seus clubes. O torcedor do Boca canta o amor ao Boca. O torcedor do Arsenal exalta a glória do Arsenal. O torcedor brasileiro canta para jurar de morte ou cobrir de humilhação os adversários. Somos o país da música, dos belos sambas, da bossa nova. Ainda podemos mudar esse lamentável estado de coisas. Precisamos resgatar o espírito dos torcedores que nos precederam.

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