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Natal de 1980

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Por MARCOS CAETANO
Atualização:

Tinha eu não os catorze anos que Paulinho da Viola transformou em canção imortal, mas quinze. Corria o mês de dezembro de 1980 e as notícias que desabaram sobre a cabeça daquele jovenzinho que, acreditem, eu já fui, eram terríveis. Mais do que terríveis, representaram uma espécie de perda da inocência, um prenúncio do evento que mudaria a minha vida completamente, pouco mais de dois anos depois: a morte abrupta de meu pai, aos 50 anos. No Natal de 1980, eu conheci a dor de festejar uma data tão calorosa e, ao mesmo tempo, conviver com a insuportável ausência de pessoas a quem devotamos amor ou admiração.Aquele foi o primeiro Natal sem que dois dos meus maiores ídolos estivessem entre nós: John Lennon e Nelson Rodrigues, ambos desaparecidos no triste mês de dezembro, daquele melancólico ano de 1980.Pelas mãos de um assassino, no dia 8 de dezembro de 1980, em Nova York, o mundo perdeu não apenas um gênio da música, mas também um agitador político, um provocador cultural, um filósofo de seu tempo.Como escreveu Beto Guedes, em sua Canção do Novo Mundo: "Quem souber a exata explicação, me diz como pode acontecer, um simples canalha mata um rei em menos de um segundo." John Lennon foi, sim, um rei - ainda que ele achasse, com certa razão, que rei mesmo foi Elvis Presley. E porque, claro, nem John nem Elvis prestaram muita atenção ao que o Rei Pelé fez com a bola nos pés. Pelas mãos do canalha cujo nome me recuso a escrever, pois essa celebridade era exatamente o que ele buscava ao puxar o gatilho, o meu herói da música, o homem que promoveu anos antes a grande campanha do Natal da Paz, pelo o fim da Guerra do Vietnã, foi arrebatado deste mundo. E, em Madureira, tão longe de Nova York, foi difícil passar o Natal sem ele.Depois de uma vida dura e cheia de tragédias, que incluíram um irmão assassinado, uma filha que nasceu cega, inúmeras desenredos amorosos e acusações de depravação por parte dos moralistas, e de reacionarismo por parte de uma esquerda retrógrada, Nelson Rodrigues morreu no dia 21 de dezembro de 1980 - ironicamente, poucas horas antes de marcar 13 pontos num bolão da Loteria Esportiva feito em conjunto com seus colegas de redação. Se hoje tenho paixão pela crônica esportiva e pela literatura de uma forma geral é porque cresci lendo os endiabrados textos do mestre no Jornal dos Sports e em O Globo. Naquele Natal de 1980, as páginas dos jornais não estampavam qualquer palavra do Sátiro da Aldeia Campista. A crônica esportiva ficou, para sempre, cronicamente conservadora, insuportavelmente informativa, irritantemente recheada de análises táticas e frias estatísticas. Sua última crônica foi publicada no dia 1.º de dezembro, no dia seguinte à conquista do título carioca pelo seu amado Fluminense. Encerrado o jogo, contrariando ordens médicas, o velho Nelson fez enorme esforço para colocar-se diante da máquina de escrever. "Preciso escrever sobre isso", disse ao filho Nelson, que o acompanhava.Lentamente, foi tamborilando nas teclas de sua Facit aquele que seria o seu canto do cisne. Entretanto, ao olhar o que aparecia no papel, Nelson Rodrigues Filho percebeu que tudo não passava de um amontoado de letras desconexas. O pai não conseguia mais coordenar o pensamento com as teclas da máquina. Sensível, o filho sugere: "Que tal o senhor ditar o texto para mim?" Assim foi feito e, na primeira segunda-feira de dezembro, eu li a última narrativa épica sobre uma conquista do Tricolor das Laranjeiras. Entretanto, no Natal, a ausência do meu herói da máquina de escrever doeu muito.Trinta anos depois daquele Natal tão triste, eu vivo momentos de grande felicidade. Tudo parece dar certo para o País, para mim e até para o Fluminense do Nelson. E, entre tanta felicidade, a alegria de constatar que as músicas de John são cada vez mais tocadas, que as peças de Nelson são cada vez mais encenadas e que as vidas de ambos são cada vez mais celebradas. Vamos celebrar também. Feliz Natal!

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