PUBLICIDADE

Publicidade

O gol para dizer não

Por UGO GIORGETTI
Atualização:

"O futebol jamais produzirá de novo alguém como ele" (The Wall Street Journal). Me incomodou o banco de reservas do Corinthians erguendo o braço no gesto que Sócrates fazia quando marcava um gol. É muito bem pensado como coreografia para as câmeras de TV, que estavam ali à espera de "algo emocionante". Alguns, talvez todos, que ergueram o braço, eram sinceros no seu apreço pelo Magrão, não nego. Apenas o gesto deles não era o de Sócrates, era imitação mecânica. Porque o gesto de Sócrates não era para comemorar gol algum. Era a utilização do gol como parte de seu ritual diário de dizer não. O gol era só mais um acontecimento de protesto na vida do Doutor. Ele estava do lado de todos que diziam não, que não se curvavam ao poder, que se rebelavam contra autoridades, que não aceitavam se submeter. Sentia, acho, uma identificação imediata com essa gente, porque ele também era, acima de tudo, insubmisso. Me perdoem o atrevimento, mas acho que na tão decantada Democracia Corintiana, se deve procurar mais uma atitude simples de não aceitação do poder do que ação política organizada. Os dirigentes eram o poder injusto e contra ele era preciso se levantar. Era preciso reagir e lá estava o Doutor. Isso é apenas a interpretação de alguém que talvez não tenha de modo algum direito de fazê-la, mas sua vida era um incessante desafiar da autoridade e da ordem estabelecida. Tudo nele equivalia a um questionamento. Questionava o treinador e os dirigentes. Num momento em que o futebol já se inclinava para a correria ele era só classe. Num clube que valorizava acima de tudo luta e garra ele impunha a categoria e a frieza. Contra o preparo físico ele brandia a inteligência. Se era preciso ter físico de atleta ele exibia físico de bailarino. Não tinha medo de se aproximar da beira do abismo e contemplá-lo cara a cara.Desafiava até a si mesmo como médico. Talvez lhe fosse intolerável o poder dos médicos, que nos determina a hora de tomar remédio, nos proíbe de fumar, beber... Ele sabia que estava errado, mas como poderia viver aceitando ordens? Nunca conheci um ser humano tão avesso à disciplina e ordens de cima sem explicação. Queriam-no quieto: ele falava. Preferiam que ficasse em silêncio: ele escrevia. Procuravam um circunspecto senhor de 57 anos, ele aparecia de bandana na cabeça. Ia onde ninguém esperava que fosse, falava onde nenhuma celebridade ousava ir. Há uns 20 dias o encontrei sentado na varanda, com seu sorriso irônico e um cigarro na boca. Destruiu-se? Quem pode dizer. O que sei é que enquanto alguns de nós íamos até uma parte do caminho e depois recuávamos prudentemente, ele ia até o fim. Me lembro que em poucos minutos estava falando como de costume, fazendo planos e pensando coisas, desafiador até o limite, até me convencer que iria sair dessa e que as coisas voltariam a ser como antes. Era um homem que queria a liberdade num mundo cheio de regras de conduta, normas e regulamento. Ele ria, e não aceitava nenhum. Teria se divertido muito de ver seu necrológio no The Wall Street Journal e no NY Times. Seus defeitos eram suas virtudes. O ano termina com um gosto terrivelmente amargo.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.