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O nosso mito fundador

colunista convidado
Por Luiz Zanin
Atualização:

Amigos, não sei se teremos daqui a um mês a Copa das Copas, como deseja a presidenta Dilma. Espero que sim, de coração. Mas isso só saberemos depois. Porque se uma Copa do Mundo é sempre marcante, há algumas que se sobressaem em relação às outras. E cada um de nós, dependendo de nossas preferências ou idade, temos a "nossa" Copa. Aquela que nos tocou fundo na alma e da qual jamais esqueceremos. Pode ser esta próxima, como não? Estive há pouco no Uruguai e visitei o Estádio Centenário. Para quem não se impressiona com modernidades e gosta de sentir a espessura da História, é uma experiência de arrepiar. Nenhuma arena modernosa teria me causado a mesma emoção causada pelo velhusco Centenário. Com certeza ele não passaria pelo crivo do mais humilde funcionário da Fifa, se é que a Fifa tem funcionários humildes. Envergonharia qualquer burocrata do futebol contemporâneo com suas arquibancadas de cimento, sem lugares marcados, acessos estreitos, bilheterias antiquadas, etc. No entanto, que charme! Quanta história acumulada no estádio que abrigou a primeira Copa, em 1930, e viu o país-sede nele ser campeão. O Centenário tem também um museu muito interessante. E a sala de honra, compreensivelmente, está reservada para a maior façanha da seleção uruguaia, a vitória sobre o Brasil por 2 a 1 na Copa de 1950. O famoso "Maracanazo", como eles o chamam de maneira até carinhosa. Quer dizer, o nosso maior trauma é a mais profunda alegria deles, e assim é o esporte. Confesso que me sensibilizei ao ver certas relíquias, como a camisa n.º 5 de, Obdulio Varela, o carrasco do Brasil na final. Durante muitos anos correu a lenda (ou seria verdade?) de que Obdulio teria dado uma bofetada em Bigode, durante o jogo, o que inibira o brasileiro pelo resto da partida. Deprimido, Bigode teria se descuidado da marcação do rápido ponteiro Gigghia, que acabou marcando o gol do título. Histórias do futebol. Para a geração brasileira de 1950, Obdulio Varela passou a ser um fantasma, nome que, evocado, despertava reverência e tremor. Nelson Rodrigues escreveu freneticamente sobre "El Jefe", que era como os uruguaios chamavam esse atleta raçudo e com talento para liderança. Para nossos vizinhos, era ele o ídolo máximo, o símbolo daquela conquista, a maior de todas do futebol oriental, maior ainda que a da primeira Copa ou das duas Olimpíadas vencidas quando ainda não havia um Campeonato do Mundo de futebol. Mas o que mais impressionou nisso tudo foi um artigo que li em jornal sobre a situação atual do futebol uruguaio, comparando-o aos tempos de glória. Mais ou menos o articulista dizia assim: "Enquanto o Brasil se recuperou plenamente da derrota, nós jamais nos recuperamos da vitória no Maracanã". Justificava o aparente paradoxo: o futebol uruguaio, preso à mística de Obdulio Varela, Gigghia e outros heróis, passou a descuidar da sua evolução, crente de que uma mística "raça", aquele espírito de luta proverbial, sempre o salvaria na hora agá. Não tem sido assim. Já o Brasil, durante anos lambeu obsessivamente as feridas daquela derrota. Trocou o uniforme da seleção, mudou a mentalidade dirigente e esperou pela chegada de uma geração de sonho. Perdeu a Copa de 1954, na Suíça, mas, em seguida, viria a Idade de Ouro, a era de Pelé, Garrincha, Didi, etc. De 1958 a 1970, em quatro Copas, três conquistas. Uma trajetória fantástica, jamais repetida por nenhuma seleção rival. Provavelmente, tudo nasceu das cinzas de 1950, da derrota mais profunda e humilhante. Pelo menos é o que reza o nosso mito de formação. O Maracanazo, que foi para eles a maior conquista de todas, para nós foi a morte ritual, aquela da qual nasce a nova vida. Como não há imagens completas daquele jogo, Paulo Perdigão analisou uma transmissão radiofônica em seu Anatomia de uma Derrota, que é o livro básico sobre a partida entre Brasil e Uruguai de 1950. O outro lado pode ser lido em Maracaná - La Historia Secreta, de Atilio Garrido, agora transformado no filme Maracaná, de Sebastian Bednarik e André Varela, que será trazido pelo Cine Foot, e será exibido dia 22 no Rio e dia 29 aqui em São Paulo - no Museu do Futebol.

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