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O rei dos reis

Pode-se dizer que um atleta transcende os limites da sua prática quando entra para a cultura do seu país. E de todo mundo. São poucos.

colunista convidado
Por Luiz Zanin
Atualização:

Cassius Marcellus Clay, depois Muhammad Ali quando se converteu ao islamismo, foi um desses poucos. Fertilizou a literatura americana e ganhou livro definitivo de um peso-pesado das letras - o escritor Norman Mailer. É de Mailer A Luta, em que descreve um ponto altíssimo na carreira de Ali, tão cheia de conquistas e proezas. Já um tanto envelhecido, Ali desafiou o então campeão mundial de todos os pesos, George Foreman, muito mais jovem e mais forte do que ele.

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Todos os especialistas, inclusive os fãs de Ali, achavam que ia ser um massacre. A luta, por razões promocionais, foi realizada no Zaire e divulgada como "Rumble in the Jungle". O promotor do espetáculo e seu regente geral era o mitológico Don King, que depois também empresariou Mike Tyson.

Havia outras questões em jogo. Ali perdera seu título mundial ao se recusar a lutar no Vietnã. O tempo havia passado e ele não se expusera no ringue por quase quatro anos. Diziam que estava fora de forma e sem os mesmos reflexos de antes.

De toda forma, o combate despertou atenção mundial, pois Ali, mesmo retirado, mantinha uma legião de fãs. Fizeram época seus combates com Liston e Frazier. Seu estilo encantava. Guarda aberta, parecia zombar dos adversários. Esquivava-se como um bailarino e, de fato, dançava com seu jogo de pernas. Enquanto isso ia acertando jabs, diretos, cruzados, uppercuts...seu repertório era fabuloso. Nos intervalos, enquanto o adversário ia sentar-se no córner, exausto, Ali continuava em pé, dançando, falando com o público, conversando. Era um artista.

E, por isso mesmo, sensibilizava outros artistas. Mailer foi ao Zaire acompanhar não apenas luta, mas todo o treinamento anterior. Corria (enquanto aguentava) ao lado de Ali na preparação para o combate.

Assistia seus treinos e suas entrevistas. Anotava tudo e preparava a reportagem. Que cresceu e virou livro. Seu relato, em 19 capítulos, saiu no ano seguinte, 1975. Só para o combate, em si, Mailer reservou três capítulos inteiros, descrevendo-o com minúcia extraordinária.

Ali surpreendeu a todos naquela noite, dia 30 de outubro de 1974, em Kinshasa, diante de 100 mil espectadores. E, em especial, surpreendeu a Foreman. Ciente de suas limitações físicas, renegou o estilo agressivo que o havia celebrizado e tratou, nos rounds iniciais, de se defender. Ia para as cordas e chamava Foreman. Este batia, batia, batia, e Ali não esboçava reação. Seus fãs viam se concretizar as piores previsões - seria um massacre. Ninguém poderia aguentar muito tempo a sova que estava sendo aplicada por aquele gigante.

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No entanto, não era bem isso. Ali defendia-se muito bem e, à medida em que o tempo passava, Foreman foi ficando cansado. Perdia fôlego, precisão e confiança. Continuava a bater. E Ali o chamava, perguntando se ele não podia fazer nada melhor do que aquilo. Para quem sabia ver boxe, a estratégia começava a ficar perceptível. Só não se sabia o que Ali tinha em mente para o desfecho. Levar o combate até o fim, até a decisão por pontos? Jamais venceria, mas sairia do ringue com honra.

Não aconteceu nada disso. Com paciência, ele esperava por uma falha, uma desconcentração do adversário. E o momento surgiu no 8º round quando, mais uma vez acuado num canto, Ali saiu para um contra-ataque inesperado, desfechando socos de esquerda e direita em sequência no rosto do adversário. Foreman sentiu, recuou, e então recebeu um direto no queixo. Cambaleou, procurou a lona e caiu, lento, como um carvalho que despenca, e foi a nocaute.

Para quem gosta de boxe, não existe luta mais linda que esta. Cerebral, astuta, coisa de gênio. E Mailer a descreveu com toda minúcia, em detalhes, com objetividade e paixão. Mais de 20 anos depois, esse épico do pugilismo transformou-se no ótimo documentário de Leon Gast, Quando Éramos Reis, de 1996.

Muito se escreveu sobre Ali. Há também o ótimo livro O Rei do Mundo, de David Remnick, editor da revista New Yorker. É um belo exemplar de jornalismo literário, descrevendo a carreira ímpar de Ali, de campeão olímpico ao ápice como o mais original e impressionante pugilista de todos os tempos. O texto fala da luta no Zaire e também da decadência, acelerada pelo Mal de Parkinson. Mas para os amantes do boxe o livro de Mailer continua sendo o definitivo. Nele se entende por que esse esporte, apesar de brutal, é chamado de "nobre arte". Ninguém a praticou como Ali.

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