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Quando o futebol é obsceno

Boleiros

Por Ugo Giorgetti
Atualização:

Pouca gente falou em Cristian. Falou-se em Ronaldo. Mas, se alguém foi realmente determinante nas vitórias do Corinthians sobre o São Paulo, o nome é Cristian. No primeiro jogo marcou quando a partida acabava, gol que, mais do que consolidar a vitória, instilou no time uma dose de moral a meu ver decisiva para entrar em campo no segundo jogo confiante e seguro de si. E no segundo jogo Cristian decidiu novamente, enfiando bola preciosa para Ronaldo. Pouco se falou do lançamento. Ocupados com a estrela maior, muitos se esqueceram de examinar como o lance começou e quem intuiu como a jogada iria se desenrolar e, de quebra, enfiou um passe pouco comum no futebol atual. Nos pés de outro jogador talvez a bola tivesse ido parar nas mãos do goleiro ou nos pés de algum defensor do São Paulo. Não foi. Lançada com extrema precisão chegou onde Ronaldo podia alcançá-la antes do goleiro. Pois bem, esse jogador, fundamental para seu clube e uma grata revelação para o futebol em geral, corre risco de ser suspenso e, salvo engano, desfalcar o Corinthians na partida final contra o Santos. Acusação: fazer gestos obscenos para uma torcida adversária. É claro que a acusação vem revestida de linguajar jurídico, cheia de parágrafos e incisos, redigida com a pomposidade habitual que tenta dar mais solenidade ao português comum. É uma acusação típica dos nossos dias, politicamente corretos na teoria, politicamente indecentes na prática. Que significa fazer gestos obscenos para a torcida? E mais: qual é o problema de fazer gestos chamados obscenos para a torcida? Só a torcida tem direito de ser obscena? Qualquer um que vai a estádios sabe o que a torcida fala para os jogadores. Hoje em dia isso pode ser ouvido até pela televisão e ninguém se incomoda. Há estádios em que a proximidade faz com que o jogador ouça com notável precisão todos os insultos que lhe são dirigidos. Todos, dos raciais aos que atingem a mãe, a irmã e a mulher. Tudo sob pretexto de que a torcida paga e, portanto, tem direito. Quem disse que no ingresso está incluído o direito de xingar jogador? O ingresso é uma permissão para assistir ao jogo e nada mais. Portanto, qualquer jogador tem direito de reagir à torcida e não merece ser punido por isso. Já houve casos clássicos no passado e vai haver sempre. A reação é humana e compreensível. Aliás, esse julgamento é de uma hipocrisia maior ainda quando é mais do que provável que a torcida "ofendida" esteja pouco ligando para as providências do Tribunal de Justiça Desportiva. Gostaria que quem vai julgar Cristian pudesse consultar os torcedores que ele supostamente ofendeu. Duvido que qualquer um deles recomendasse algum tipo de punição. Acho que se contentariam de, em coro e inúmeras vezes, mandar o Cristian para aquele lugar, como mandam as tradições do futebol. Mas os juízes talvez não pensem assim. E uma coisa que deveria ser resolvida entre jogador e torcida, e ficar apenas nisso, pode terminar com uma punição injusta e injustificável. O tribunal deveria atentar para o que realmente é obsceno no futebol, como, por exemplo, o preço que o Santos determinou para a partida de hoje na Vila. Não sei se é da alçada do tribunal, mas deveria ser. E o fato de a torcida ter esgotado os ingressos só torna a atitude mais odiosa. Para isso não há punição. Para o gesto do Cristian há.

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