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Um craque na arte de viver

Nilton Santos, lateral bicampeão do mundo, resiste a doenças graves e mantém inabalável o amor pelo Botafogo

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Por Silvio Barsetti
Atualização:

Desde 2007, um adversário implacável tenta, e não consegue, driblar Nilton Santos. Vítima do Mal de Alzheimer, o bicampeão mundial, de 83 anos, superou nos últimos meses uma dengue hemorrágica e uma pneumonia. Ele vive numa clínica da zona sul do Rio há dois anos e exerce marcação cerrada sobre as doenças que querem deixá-lo definitivamente fora do futebol. Também enfrenta problema de insuficiência cardíaca e precisa de acompanhamento em tempo integral. Apesar do desgaste, das doses intermináveis de remédios e da perda progressiva de memória, Nilton Santos não entrega os pontos nem perde o bom humor. "Se eu fosse jogar hoje, não serviria nem para ficar na barreira." A voz sai arranhada, quase inaudível. Mas um leve sorriso vale como um bálsamo para quem está ao lado. Interagir com o maior lateral-esquerdo de todos os tempos é sempre motivo de alegria. Maria Célia, sua inseparável companheira, alerta que muitas perguntas podem cansá-lo. Então, a rápida entrevista se transforma numa visita e as poucas palavras de Nilton Santos preenchem com leveza a suíte repleta de lembranças do Botafogo, o único clube em que atuou (de 1948 a 1964). São quadros, relógios, caneca, copo, chinelo, almofadas, tudo com o escudo do Alvinegro. Logo na entrada, um aviso em madeira talhada dá o tom de como qualquer intruso deve se comportar. "Seja bem-vindo. Não fale mal do Botafogo." Os quatro médicos de Nilton Santos e a enfermeira Marly dos Santos são botafoguenses. Tudo na vida dele gira em torno do clube. Ao ser informado da presença de uma equipe de reportagem no quarto, pergunta para o primeiro com quem se depara. "Qual o seu time?" A resposta parece desapontá-lo, embora ele reaja de modo simpático e acolhedor. "O América é o segundo de todo carioca." Nilton Santos é a figura mais querida da casa. Todas as manhãs, ele caminha por uma trilha sinuosa, entre eucaliptos e outras árvores centenárias, até o Café da clínica. Naquele pequeno e aconchegante espaço rústico, outros pacientes se encontram diariamente para falar de amenidades e, muitas vezes, de Nilton Santos. Uma bandeirinha do Botafogo, colocada em cima da geladeira, sugere que o mais famoso frequentador do Café tem lugar cativo ali. E ele tem mesmo: a mesinha ao lado do piano, sempre ocupada com um laptop aberto para que ninguém se atreva a tomar o lugar. "Se ele chega e vê alguém sentado na sua cadeirinha, faz uma cara feia e cobra da gente. Por isso, resolvi deixar o computador na mesa", conta Márcio Baraúna, que explora o espaço. Foi por causa de Nilton Santos que Garrincha se apresentou mais rapidamente ao mundo do futebol. Em 1953, Nilton Santos já era Nilton Santos e Garrincha, apenas Mané. O gênio saiu da lâmpada logo em seu primeiro treino em General Severiano. Como reserva, deixou o lateral titular atônito, sem fôlego, com suas arrancadas e dribles desconcertantes. "O cara é um monstro, tem que contratar", foi o que disse Nilton, à época, ainda sob o impacto do malabarismo daquele jovem debutante de pernas tortas. Garrincha morreu em 20 de janeiro de 1983. A amizade, o respeito e a devoção de Nilton Santos por outro gigante do futebol se perpetuaram. Desde que Garrincha saiu de campo, o lateral passou a homenageá-lo a cada 20 de janeiro, com orações e uma vela acesa. O ritual foi interrompido no ano passado, por causa do Alzheimer. A memória e o coração, neste caso, se aliaram para não deixar a chama apagar. "O Garrincha era um brincalhão, uma pessoa do bem." Teria sido melhor que Pelé? A pergunta, um tanto quanto indelicada, tem uma resposta lúcida e elegante, no estilo Nilton Santos. "Como ponta, ele foi o melhor do mundo. O Pelé, na posição dele, também foi o melhor do mundo." O ex-jogador recebe amigos de seu tempo de Botafogo. Amarildo, Cacá e Adalberto são os mais assíduos. Na clínica, não são apenas os pacientes e funcionários que adulam Nilton Santos. Nos primeiros meses de internação, um gato apelidado de "campeão" se tornou o seu xodó. O felino surgia todos os dias da mata fechada ao redor do prédio e buscava o colo de seu tutor. Conta a lenda que o único incidente entre os dois ocorreu por ciúme do gato. Certa vez, um visitante desavisado cumprimentou Nilton Santos com um tapinha nas costas e a saudação de "fala, campeão". O gato teria se irritado com a concorrência e arranhou as pernas do dono antes de sair em disparada. A história é relembrada no momento em que Nilton descansa na poltrona do quarto. Ele confirma a versão contada pelo dono da clínica, Paulo Valença, com outro sorriso. Nilton Santos dispensa a ajuda de enfermeiras para as refeições quando degusta sorvete e o seu doce preferido: a torta "Nilton Santos", uma mistura de goiabada e ricota, criada há poucos meses no Café. O restante das atividades de rotina exige a intervenção direta de outras pessoas, em especial de Maria Célia. "Ela está de parabéns, é uma guardiã, uma protetora do Nilton para todas as horas", elogia Paulo Valença, responsável por um desconto generoso no aluguel da suíte - de 40% (o valor total seria de R$ 11 mil por mês, sem contar com os medicamentos e os serviços profissionais). Quase todas as despesas do "hóspede" são pagas pelo Botafogo, que acaba de lançar uma camisa retrô do próprio Nilton Santos para ajudá-lo. Conhecido como a Enciclopédia do Futebol, cognome criado pelo locutor Waldir Amaral no Mundial de 1958, Nilton Santos tem, na medida do possível, alguma qualidade de vida. O Alzheimer é degenerativo, mas praticamente estacionou nos últimos meses. Na sua missão diária de se manter alegre e espirituoso, Nilton desafia seu principal adversário com a vontade de seguir em frente e o calor humano de quem o cerca. "Eu estou bem, eu me sinto feliz." Um cavalheiro "Minha religião é não fazer mal a ninguém e, se puder, ajudar o próximo" "Eu não dou bico na bola" "Naquele tempo, lateral que passasse do meio do campo era considerado maluco" (sobre as décadas de 1940 e 50) "Eu sempre gostei de atacar, mas fazia com cuidado, pois se o time tomasse um gol naquela hora eu ia parar na forca" "Era hilariante o desmanche que fazia por ali" (sobre a atuação de Garrincha contra a União Soviética, em 1958) "Ele me deu um baile" (sobre o primeiro treino de Garrincha no Botafogo, em 1953) "A bola é minha vida. Foi quem me deu tudo. Nunca me traiu, nunca me bateu na canela. Sempre me obedeceu"

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