Um encontro divino

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Por Ugo Giorgetti
Atualização:

Entrei na fila do caixa do supermercado e vi que só havia uma pessoa para ser atendida antes de mim. Me alegrei, ao notar que suas compras eram poucas, o que me permitiria ser logo atendido. Num movimento automático meu olhar subiu, daqueles poucos produtos que ele tinha colocado sobre o balcão, para o rosto do homem. Tinha mais ou menos a minha idade e não levei mais do que poucos segundos para reconhecer o grande craque. O maior que já tinha visto jogar esse jogo de bola. O mais elegante, clássico, imperturbável, que durante anos e anos desfilou seu futebol feito de toques sutis e desconcertantes pelos campos do Brasil. Era ele mesmo, que tantos campeonatos tinha conquistado jogando pelo meu time. Sabia que morava por perto, mas nunca o tinha encontrado. Ali, na fila para pagar suas compras, era um completo anônimo e ninguém aparentemente tinha a menor idéia de quem tinha sido. Pude assim passar a observá-lo tranqüilamente e ver se através de sinais exteriores poderia ficar sabendo alguma coisa sobre ele. Claro que seria mais fácil falar com ele, expressar-lhe minha admiração e fazer perguntas. Muita gente faria isso mas, infelizmente, eu não consigo: tenho dificuldade com as coisas simples. Olhei cuidadosamente para suas compras. Eram de fato poucas. Vi uma embalagem de suco, alguns itens que não identifiquei direito e três cebolas. As cebolas me causaram uma certa tristeza. Pensei numa refeição frugal, num homem sozinho, sei lá, as três cebolas me deram uma sensação estranha. Me ocorreu que passava necessidades e não estava bem financeiramente. Olhei de esguelha para seu rosto, que eu vira tantas vezes em campo, pela tv, e nos jornais. Trazia um boné na cabeça, um pouco enfiado demais, como se temesse ser reconhecido. Mas não havia razão para temor algum:ninguém sequer o olhava. De qualquer maneira o boné parecia de qualidade e, para minha alegria, as roupas também. Tudo mais ou menos discreto, como sempre. Não, não parecia passar necessidades. A moça do caixa perguntou se ele tinha o "Cartão Mais". Para meu contentamento respondeu que não (também não tenho). Ela então somou tudo e, para aumentar minha satisfação, o grande craque tirou cuidadosamente da carteira uma nota de vinte reais e a estendeu à moça. Digo satisfação porque não agüento mais gente que compra uma caixa de fósforos em supermercados e paga com cartão de crédito. O craque pagou em dinheiro, e isso nos aproximou ainda mais. A moça deu-lhe o troco e eu pensei em interromper seu gesto e informá-la que estava diante de um personagem histórico, não qualquer cliente, não qualquer pessoa, mas um grande craque, uma lenda. Talvez, porém, o gerente fosse chamado e eu expulso por perturbar o funcionamento do lugar. Depois do troco dado, a moça, indiferente ao craque, passou a dedicar sua atenção a mim, como se eu e ele fôssemos iguais! Paguei minhas compras (em dinheiro), e saí rapidamente. Ele ia um pouco à frente e o andar era o mesmo. Podia reconhecer o andar, pois tinha visto e revisto aquele gingado, aquela enganosa lentidão por tanto tempo. Procurou seu carro entre os estacionados e o veículo me pareceu cuidado, não exatamente novo, mas digno. Não sei por que isso me tranqüilizou. Talvez ele leve uma boa vida, talvez seja até feliz. Decidi cumprimentá-lo, se o encontrar de novo.

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