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Vaias e civilidade

Por Marcos Caetano
Atualização:

Dois assuntos dominaram a segunda semana de competições do Pan do Rio: a disputa medalha a medalha entre Brasil e Cuba pela segunda colocação geral e o comportamento dos torcedores brasileiros durante as provas de determinadas modalidades, sobretudo atletismo. Comentaristas, atletas estrangeiros e até alguns atletas nacionais não pouparam críticas às furiosas vaias dirigidas pelos fãs brazucas aos nossos adversários das provas disputadas no Engenhão e em outras arenas, quadras e tatames espalhados pela Cidade Maravilhosa. Segundo os críticos, a falta de etiqueta esportiva denota, em primeiro lugar, falta de respeito ao esforço de atletas das provas individuais, que tanto lutaram para participar dos jogos. Além disso, houve quem considerasse que as vaias são espécie de comprovação sonora do nosso estágio atrasado de civilização. Já nos esportes coletivos, parece haver consenso de que a pressão sobre adversários é socialmente aceitável. Concordo com os críticos quando mencionam o desrespeito aos atletas. Vaiar uma menina de 15 anos que abriu mão da infância para se dedicar à ginástica só porque ela é norte-americana é uma brutalidade. Já a percepção de que apenas povos menos desenvolvidos vaiam atletas não poderia estar mais equivocada. Dos hooligans europeus aos torcedores do futebol americano, não faltam exemplos de mau comportamento e até de manifestações de racismo dirigidas aos atletas. Mas, como as nossas vaias mais criticadas foram as do atletismo, puxei pela memória em busca de episódio semelhante envolvendo países de Primeiro Mundo. E assim me vieram à mente cenas da Olimpíada de 1984, realizada em Los Angeles, uma das mais progressistas cidades da maior potência do atletismo: os Estados Unidos. A grande vilã daqueles Jogos, acreditem se quiser, foi uma atleta jovem e franzina. Uma sul-africana, chamada Zola Budd, que cultivava o singelo hábito de correr descalça. Com apenas 17 anos, Zola chocou o mundo ao quebrar o recorde mundial dos 5.000 metros. Como competia pela África do Sul, então sob o regime do apartheid, a comunidade esportiva se recusou a reconhecer sua marca. Foi assim que ela decidiu se mudar para a Inglaterra, para defender as cores da Grã-Bretanha. Quando bateu pela segunda vez o recorde, já como corredora britânica - mas ainda descalça -, sua marca foi finalmente reconhecida. Apesar das performances expressivas, a menina ficou na história pelo fato de correr descalça e, principalmente, pela grande confusão na qual se meteu na prova dos 3.000 metros, nos jogos de Los Angeles. Naquela prova, a queridinha da torcida e grande favorita à medalha de ouro era a norte-americana Mary Decker. Tudo ia bem até os 1.700 metros, quando Zola se destacou do pelotão de corredoras e disparou na liderança. Desacostumada a correr atrás, Decker começou a forçar a ultrapassagem, trombando com ela duas vezes antes do momento que definiu a prova. Na terceira trombada, Decker tropeçou na rival e caiu dramaticamente, contundindo-se e perdendo a esperada medalha. Zola continuou correndo, mas as impiedosas vaias da multidão a devastaram. Assustada com a fúria dos torcedores, a menina foi perdendo posições e acabou num melancólico 7º lugar. Depois da prova, foi falar com Mary Decker - a quem idolatrava - para se desculpar. Se desculpar por algo que não fez, diga-se, já que a IAAF acabou se pronunciando por sua inocência no episódio. ''''Não enche'''', foi a resposta de Decker, registrada pelas câmeras de TV. Após o incidente, a imprensa norte-americana execrou a corredora descalça, enquanto a mídia mundial procurou apoiá-la. Que eu saiba, ninguém considerou a vaia dos norte-americanos uma prova do atraso de sua civilização. Uma competição esportiva é apenas uma competição esportiva - e não um tratado sociológico.

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