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Com seu baile de favela, Rebeca ginga frente ao destino e redesenha o futuro

Marcelo Moutinho é escritor e jornalista; autor de 'A lua na caixa d’água', 'Rua de dentro' e 'Ferrugem', entre outros livros

Por Marcelo Moutinho
Atualização:

Era dia da aula aberta sobre “Dom Casmurro”, a principal da agenda do pré-vestibular comunitário naquele ano de 2018. O romance de Machado de Assis fora escolhido como tema da prova de redação no concurso que poderia viabilizar o sonhado ingresso na Universidade Estadual do Rio. Responsáveis pela atividade, estávamos preocupados. A Polícia logo cedo invadira o Complexo da Maré na captura de um chefão do tráfico e o clima tenso tornava plausível a chance de a aula simplesmente não acontecer.

O Complexo fica às margens da Avenida Brasil, maior via expressa do Rio de Janeiro, e reúne 16 favelas. Cerca de 140 mil pessoas moram lá. Após falar com as coordenadoras do curso, tive a confirmação: tudo OK para o evento. Então comuniquei à professora convidada. Ela jamais havia pisado numa favela e se mostrava muito apreensiva.

Marcelo Moutinho é escritor e jornalista; autor de 'A lua na caixa d'água', 'Rua de dentro' e 'Ferrugem', entre outros livros Foto: Leo Aversa

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Entramos juntos pela rua que dá acesso ao auditório. A Polícia àquela altura já batera em retirada e a presença do tráfico não buscava subterfúgios. Armas pesadas, walkie-talkies, olhares desconfiados. Ao lado da professora, caminhei atéo local da aula, tentando conversar com ela, deixá-la tranquila. Mas eu próprio, embora mais cascudo, estava aflito.

Na entrada do galpão, pudemos ouvir a música vinda de dentro. Um tema clássico. Em poucos segundos, constataríamos que o som embalava o treino de balé de 20 ou 30 meninas. Todas pretas. Alheias ao cenário externo, elas bamboleavam. Felizes. Apesar da falta de grana e de amparo do poder público, apesar da opressão da Polícia, do tráfico ou da milícia. Apesar de.

A cena, que já descrevi numa crônica, me volta à mente enquanto assisto ao voo de Rebeca Andrade sobre o tablado. A ginasta dá um pique, emenda com o flic-flac, dois mortais, cai de pé. Ela já tem duas medalhas olímpicas na bagagem - uma de ouro, outra de prata -, quando disputa a final do solo em Tóquio. A terceira não vem, o passo errado lhe tira preciosos centésimos, e no entanto a imagem na lembrança possivelmente será a do corpo a deslizar, requebrar, encantar, sob um ritmo proscrito. É baile de favela, sim. Rebeca nasceu em Vila Fátima, periferia de Guarulhos (SP). Filha de Dona Rosa Santos - uma empregada doméstica que, além dela, criou outros seis -, experimentou na infância a realidade de tantas crianças brasileiras. Mais de cinco milhões entre nós têm apenas o registro da mãe na certidão de nascimento, informa o Censo Escolar do Conselho Nacional de Justiça (2013). A atleta conhece o pai, mas ele nunca se fez presente em sua vida. É um nome num documento. Assim como as bailarinas da Maré, foi graças a um projeto social que Rebeca conheceu o ofício no qual hoje brilha. Com apenas quatro anos, chegou ao Programa de Iniciação Esportiva, mantido pela prefeitura de sua cidade, onde logo ganharia o apelido de "Daianinha de Guarulhos". Nem sempre havia dinheiro para o transporte até o centro de treinamento. Se a grana faltava, cumpria o percurso a pé. Duas horas de jornada.

As coisas melhoraram a partir de 2012, quando assinou contrato com oFlamengo. A luta passou a ser outra: contra as contusões. Arrebentou o joelho, esteve por três vezes numa mesa de cirurgia, ficou fora de competições importantes, pensou em desistir. Quem nunca?

Na mesma segunda-feira em que Rebeca alcançou o quinto lugar no solo, Vitória Rosa, do atletismo, lamentava a eliminação na prova de 200m rasos. “Perdi patrocínio, tive o salário reduzido, mas a gente está aqui pra tentar”, disse. Rebeca e Vitória são faces complementares. No júbilo e também na derrota, está um país que cogita falar em meritocracia sem sequer ter resolvido o passivo da escravidão.

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O historiador Luiz Antonio Simas costuma afirmar que o Brasil deu certo. Que o plano era exatamente ser desigual, racista, misógino, homofóbico. Contudo, há meninas fazendo seus pliés e jetés na favela. Há Rebeca Andrade dançando funk no Japão. Com obstinação e habilidade, elas gingam frente ao destino, driblam o traçado, rabiscam o roteiro - e, nesse movimento, sugerem que o desenho do futuro pode ser diferente.

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