Depois do horror da guerra, refugiados disputam Olimpíada

COI prepara uma equipe com expatriados para competir no Rio

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Por Jamil Chade e correspondente em Genebra
Atualização:
5 min de leitura

Ela nadou como se não houvesse outra razão de viver senão a de chegar ao outro lado. Não se tratava de uma competição nem da busca por um lugar no pódio, e sim da travessia do mar entre a Turquia e a Grécia. Yusra Mardini é uma refugiada síria que, em 2015, chegou a até a Alemanha percorrendo o mesmo perigoso caminho que milhares de pessoas atravessaram fugindo da guerra. Nas mesmas águas que nadou, muitos de seus compatriotas naufragaram. Agora em lugar seguro, ela nada com outro objetivo: fazer parte da primeira equipe de refugiados em uma Olimpíada.

O time será formado por sírios, iraquianos, iranianos, sudaneses e congoleses que, nos últimos anos, abandonaram seus países por conta das guerras. Se forem classificados para os Jogos do Rio de Janeiro, não representarão os lugares em que nasceram, mas o exército de 60 milhões de pessoas que vivem como refugiados pelo mundo.

O COI (Comitê Olímpico Internacional) já identificou 43 atletas com idades entre 17 e 30 anos que poderão fazer parte do time inédito. Na entidade, a estimativa é de que no máximo uma dezena deles conseguirá se qualificar para a Olimpíada. Mas a passagem da equipe pelo estádio do Maracanã promete ser um dos mais emocionantes da cerimônia de abertura dos Jogos. A equipe será a penúltima a entrar no estádio, antes da brasileira, sob o hino e a bandeira olímpicos.

Yusra Mardini ajudou a salvar vidas numa travessia no Mediterrâneo Foto: Fabrizio Bensch|Reuters

No COI, a opção por investir na equipe de refugiados foi tomada como mensagem política. “Queremos mandar uma mensagem de esperança aos refugiados do mundo’’, declarou o alemão Thomas Bach, o presidente da entidade.

A Organização das Nações Unidas (ONU) também comemorou e bancou a ideia, afirmando que a criação da equipe mandaria uma “mensagem poderosa’’ de tolerância diante de governos ávidos por fechar suas fronteiras e expulsar estrangeiros. Hoje, a crise de refugiados é a pior desde a Segunda Guerra Mundial e, ainda assim, autoridades têm preferido erguer cercas e até confiscar os bens dos estrangeiros.

Para garantir a participação dos atletas, o COI destinou um orçamento de US$ 2 milhões e vai providenciar uniformes, técnicos e treinamento. A entidade ainda pediu que cada comitê olímpico nacional identificasse em seus países eventuais refugiados que pudessem entrar numa competição internacional de alto nível.

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Primeira experiência. Em 2012, o COI já teve o primeiro refugiado correndo com a bandeira olímpica. Tratava-se de Guor Mading Maker. Naquele ano, seu país, o Sudão do Sul, ainda não era reconhecido no COI e o corredor de maratona não aceitava representar o regime do Sudão, que estava em guerra contra sua terra natal.

Agora, o COI levará uma equipe inteira. No Rio de Janeiro, todos ficarão hospedados na Vila Olímpica. Haverá um cuidados especial para evitar eventuais encontros indesejáveis e constrangedores com dirigentes dos países de onde tiveram de fugir. Mas são as histórias pessoais de superação e sobrevivência que mais chamam a atenção. Dos 43 atletas pré-selecionados, mais da metade é de atletas africanos. Eles são de Uganda, Burundi, Ruanda, Mali ou Sudão do Sul. O time final será anunciado em junho.

Com 17 anos, a jovem síria Yusra Mardini passou a ser uma das imagens mais emblemáticas deste esforço. Junto com sua irmã, Sarah, ela embarcou em um barco inflável na Turquia em agosto de 2015 rumo às ilhas gregas. No Mar Egeu, porém, a guarda costeira turca conseguiu evitar que continuassem a viagem. O barco teve de voltar para a Turquia. Numa segunda tentativa, o motor da embarcação quebrou depois de 30 minutos de trajeto, deixando o grupo à deriva em alto mar.

As duas irmãs, por saberem nadar bem, decidiram pular do barco e, com as cordas do bote nas mãos, ajudaram a guiar os refugiados até a ilha de Lesbos. Naquela noite, e em plena escuridão, nadaram por mais de três horas e ajudaram a salvar 20 pessoas da guerra e de um eventual naufrágio. Quando chegaram à ilha grega, não tinham nada mais que a roupa do corpo.

Alguns meses depois, as duas irmãs chegaram até a Alemanha e um grupo local, sabendo de suas qualidades como nadadoras, as inscreveram num dos clubes locais, o Wasserfreunde Spandau 04, de Berlim. A história de Yusra, a partir daquele momento, mudaria e ironicamente contrastaria com a resistência enfrentada por muitos refugiados. A piscina onde passou a treinar havia sido construída a pedido de Adolf Hitler para os Jogos de 1936. Lá, os alemães eram treinados para mostrar ao mundo a superioridade da raça ariana. A presença da jovem síria foi um recado a cidades alemãs que, diante do fluxo de 1,1 milhão de refugiados, instaurou regras para impedir que refugiados usassem piscinas públicas.

“Eu quero mostrar que não podemos desistir nunca’’, disse a nadadora ao site da ONU. Yusra já havia sido selecionada para o Campeonato Mundial de Natação de 2012, na Turquia. Mas diz se lembrar de ver, enquanto nadava em Damasco, bombas voando pelos céus da capital da Síria.

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Outra forte candidata é a lutadora de tae kwon do Raheleh Asemani, do Irã. Ela já está classificada para os Jogos. Mas ainda aguarda para saber se disputará o evento pela Bélgica, país de acolhida, ou pelo time de refugiados. A lutadora deixou o Irã em 2012, depois de ter sido considerada a principal atleta do esporte no país.

Longe de Teerã, ela passou a trabalhar no serviço de correios da Bélgica e treina com a seleção local. . Ela conquistou a medalha de bronze no Aberto da Espanha e ouro em competições na Áustria, Croácia, Polônia e Sérvia. “O Rio de Janeiro é um sonho para mim’’, disse também para a ONU. “Foi a esperança que me fez chegar até os Jogos de 2016’’, disse.

Corredores. O COI ainda criou uma “peneira’’ nos dois maiores acampamentos de refugiados do mundo, o de Kakuma e Dadaab, ambos no Quênia. Com 180 mil pessoas, o Kakuma recebe estrangeiros do Sudão do Sul, país em guerra e que já soma 2 milhões de refugiados. Mas também serve de abrigo para milhares de etíopes, ruandeses, eritreus e refugiados da Somália, Congo e Uganda.

Orientados por ex-atletas quenianos, os refugiados são escolhidos e levados a um centro de treinamento perto de Nairobi, a capital. Em sua maioria, são corredores de 800 metros, maratona e de 5 mil e 10 mil metros. Todos, porém, foram obrigados a deixar os treinamentos há meses diante das guerras que enfrentaram.

Uma das principais apostas é Mohammed Daud Abubakar, da Somália. Outra aposta é o congolês Nzanzumu Gaston Kiza. Hoje com 22 anos, ele viu sua família ser massacrada em uma limpeza étnica.

O COI não acredita que esses refugiados terão chances de medalha. Mas a presença deles no Rio promete ser uma vitória pessoal de cada um dos atletas e um recado ao mundo.