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O único objetivo da máquina de esportes chinesa: o máximo de medalhas de ouro, a qualquer custo

Pequim se concentra em esportes secundários, com poucos recursos no Ocidente ou aqueles oferecem várias medalhas olímpicas

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Por Hannah Beech
Atualização:

Ao longo de seis dias por semana, desde os 12 anos de idade, com apenas alguns dias de folga a cada ano, Hou Zhihui tem uma missão: levantar mais do que o dobro do peso de seu próprio corpo no ar. No sábado, nas Olimpíadas de Tóquio-2020, a dedicação de Hou - tirada de sua família, perseguida por dores quase constantes - valeu a pena. Ela ganhou o ouro na categoria de 49 quilos e quebrou três recordes olímpicos como integrante do temível time de levantamento de peso feminino chinês, que tinha como objetivo vencer todas as categorias de peso em que estivesse competindo.

“A equipe chinesa de levantamento de peso é muito coesa e o apoio de toda a equipe é muito bom”, disse Hou, 24 anos, após ganhar o ouro. “A única coisa em que nós, atletas, pensamos é nos concentrarmos no treinamento”.

Com foco em esportes secundários e modalidades com pouco investimento no Ocidente, China lidera o quadro de medalhas Foto: David Goldman/AP

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A linha de montagem esportiva da China foi projetada com um único propósito: produzir medalhas de ouro para a glória da nação. Prata e bronze mal contam. Ao levar 413 atletas para Tóquio, sua maior delegação de todos os tempos, a China pretende chegar ao topo da contagem de medalhas de ouro - mesmo que o público chinês esteja cada vez mais desconfiado dos sacrifícios feitos pelos atletas. “Precisamos ter certeza de que seremos os primeiros nas medalhas de ouro”, disse Gou Zhongwen, presidente do Comitê Olímpico Chinês, na véspera das Olimpíadas de Tóquio.

Enraizado no modelo soviético, o sistema chinês depende do Estado para avaliar dezenas de milhares de crianças para treinamento em tempo integral, em mais de 2 mil escolas de esportes administradas pelo governo. Para maximizar sua colheita de ouro, Pequim se concentrou em esportes menos proeminentes e com poucos recursos no Ocidente, ou em esportes que oferecem várias medalhas olímpicas.

Não é por acaso que quase 75% das medalhas de ouro olímpicas que a China conquistou desde 1984 estão em apenas seis esportes: tênis de mesa, tiro, mergulho, badminton, ginástica e levantamento de peso. Mais de dois terços das medalhas de ouro da China vieram pelas mãos de campeãs femininas, e quase 70% de sua delegação em Tóquio são mulheres.

A China, com Fan Zhendong (esq.) e Ma Long, conquistou prata e ouro, respectivamente no tênis de mesa nesta sexta-feira Foto: Anne-Christine Poujoulat / AFP

O levantamento de peso feminino, que se tornou esporte de medalha nos Jogos de Sydney em 2000, foi alvo ideal para a estratégia da medalha de ouro de Pequim. O esporte é uma busca de nicho para a maioria das potências atléticas, o que significa que as levantadoras do Ocidente devem lutar por financiamento. E com várias categorias, o levantamento de peso pode oferecer até quatro medalhas de ouro.

Para os czares dos esportes de Pequim, não importava que o levantamento de peso não tivesse apelo de massa na China ou que as meninas pré-adolescentes levadas para dentro do sistema não tivessem ideia de que tal esporte existisse. No centro de treinamento da equipe nacional de levantamento de peso em Pequim, uma gigante bandeira chinesa cobre uma parede inteira, lembrando aos levantadores que seu dever é para com a nação, não para consigo mesmos.

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“O sistema é altamente eficiente”, disse Li Hao, chefe do plantel de levantamento de peso nos Jogos de 2016 no Rio de Janeiro e atual diretora do departamento antidoping do Centro de Levantamento de Peso, Luta Livre e Judô da Administração Geral de Esporte da China. “É provavelmente por isso que nosso levantamento de peso é mais avançado do que o de outros países”.

O foco de Pequim tem sido em esportes que podem ser aperfeiçoados com rotinas de treinamento, em vez daqueles que envolvem a interação imprevisível de vários atletas. Além do vôlei feminino, a China nunca ganhou ouro olímpico em um grande esporte coletivo.

Em Tóquio, a estratégia de Pequim entregou, até o meio-dia de quinta-feira, 14 medalhas de ouro, superando os Estados Unidos e o Japão pela liderança. A China conquistou o primeiro ouro dos Jogos, no rifle feminino de ar comprimido de 10 metros, e chegou à sua primeira vitória na esgrima. (Os esportes em que a China domina são agrupados na primeira semana dos Jogos, enquanto os pontos fortes dos Estados Unidos estão espalhados por todo o período de competição).

Mas, em alguns dos redutos tradicionais da China, como tênis de mesa, mergulho e levantamento de peso, as esperanças de ouro não se concretizaram. Houve outras decepções antes do início dos Jogos. Um grande nadador foi banido por doping. As equipes masculinas de futebol, vôlei e basquete não conseguiram se classificar.

Gong Lijiao celebra o ouro no arremesso de peso feminino Foto: Ina Fassbender / AFP

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Para a máquina esportiva chinesa, todos aqueles penosos anos de esforço ainda podem ser frustrados no calor da competição olímpica. Na segunda-feira, em Tóquio, Liao, a levantadora da categoria de 55 quilos, começou o evento como a atual campeã mundial. Dois dias antes, em uma categoria de peso mais leve, Hou havia conquistado o ouro.

Liao subiu ao palco na segunda-feira com uma expressão que oscilava entre a resolução e a resignação. Nos últimos momentos da competição, uma rival filipina a ultrapassou para levar o ouro.

Momentos depois, Liao, 26 anos, começou a chorar, com a respiração entrecortada. Sua treinadora passou o braço em volta dela e também chorou. Por fim, Liao, de olhos vermelhos, respondeu a perguntas de repórteres chineses. A prata era uma grande conquista, disse um jornalista. Liao ficou olhando para o chão. “Hoje fiz o meu melhor”, disse ela. E as lágrimas rolaram mais uma vez. O trauma de todos aqueles anos lutando contra a implacável força da gravidade pesou sobre o corpo de Liao. “Elas estão sempre lá, há muitos anos”, disse ela sobre suas lesões. “De novo e de novo”. Mas, ao contrário de Simone Biles ou Naomi Osaka, renomadas atletas olímpicas que falaram sobre a tensão emocional de tanta pressão, Liao não falou sobre o custo mental do que fizera, dia após dia, desde que era uma garotinha. Liao suspirou. Enxugou os olhos com a manga do uniforme. Os Jogos Nacionais estavam chegando, disse, e ela representaria sua província natal de Hunan. O financiamento do esporte para as províncias depende, em parte, de como cada uma se sai nos Jogos Nacionais. As Olimpíadas acabaram para ela. Mas tinha um novo trabalho a fazer.Este artigo foi originalmente publicado no New York Times / Tradução de Renato Prelorentzou  

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