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No Aberto dos EUA, o silêncio é bem recebido pelos azarões

Ciência explica porque a ausência de público prejudica os favoritos e beneficia as 'zebras'

Por Matthew Futterman
Atualização:

Um dos mantras tipicamente usados por técnicos que tentam preparar seus atletas para uma disputa em uma arena de destaque consiste em lembrar que essa quadra de tênis, pista de atletismo ou campo de futebol não é diferente do espaço onde são realizados os treinos. Normalmente, é impossível acreditar realmente nisso — mas não é o caso do silencioso Aberto dos Estados Unidos, disputado sem público. Aqui, em estádios vazios, os desconhecidos bateram muitos dos nomes mais consagrados.

Estádio Arthur Ashe, onde estão sendo disputados os jogos do US Open, é a maior arena do tênis com 24 mil lugares Foto: Al Bello / AFP

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Serena Williams disse que jogar sem público pagante, apenas diante de técnicos e, no máximo, uma dúzia de pessoas acompanhando até as partidas mais importantes, lembrou-a dos primeiros torneios disputados na divisão mirim, quando era menina. Sem um público para o qual jogar e do qual extrair energia, Novak Djokovic, um dos grandes astros desse esporte, pareceu perdido e irritadiço, a ponto de rebater uma bola em um acesso de frustração, atingindo acidentalmente um juiz no pescoço e, consequentemente, sendo desclassificado do torneio.

“Eu me alimento da energia do público e, sem ele, os erros parecem mais solitários", disse Naomi Osaka, campeã da edição de 2018 e cabeça da quarta chave desse ano.

Quase todos os jogadores participando do Aberto dos EUA disseram que não gostam de jogar sem público. O efeito do silêncio incomum é quase impossível de discernir, porque não pode ser isolado de outros fatores. Mas, antes do início do torneio, muitos especialistas previram que, sem a multidão gritando, os "oohs" e "aahs" durante os pontos e os crescendos nos momentos dramáticos, a disputa ficaria mais equilibrada, especialmente no Arthur Ashe Stadium, maior arena do tênis, com quase 24 mil assentos. Por enquanto, parece que eles tinham razão.

A americana Jennifer Brady, classificada na 28ª posição, deu sequência à sua improvável saga na terça feira, chegando à sua primeira semifinal de um torneio do Grand Slam depois de despachar Yulia Putintseva, do Cazaquistão, 23ª colocada, em parciais de 6-3 de 6-2 em partida de 69 minutos. Jennifer, 25 anos, disse que para ela foi fundamental não pensar que estava disputando uma vaga nas semifinais de um Grand Slam, mantendo o controle das emoções.

“É um pouco mais fácil sem torcida", disse ela. Jennifer, que teve dificuldade nos grandes torneios dos dois anos mais recentes, tem bastante experiência em disputas menores, de pouco destaque, na periferia do tênis profissional. Ela também conheceu o público barulhento e agitado do Aberto dos EUA. Nesta edição, ainda não perdeu um único set, incluindo uma vitória nas oitavas de final contra a alemã Angelique Kerber, ex-número 1 do mundo e tricampeã do Grand Slam.

“É diferente", disse Wim Fissette, técnico de Naomi, a respeito do clima único desse torneio. “Para quem nunca jogou no Ashe lotado e tem essa oportunidade de entrar em quadra para enfrentar alguém como Naomi ou Serena, é um grande momento.”

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Nada disso surpreende os especialistas em psicologia social. Eles passaram mais de um século tentando entender os efeitos de um público no desempenho humano e testando uma teoria de facilitação social proposta pelo psicólogo americano Robert B. Zajonc, um dos gigantes da área.

A hipótese se resume a: quando uma tarefa é fácil (correr em linha reta, por exemplo, ou derrotar um tenista muito inferior), a presença de um público melhora o desempenho. Mas, quando a tarefa é complexa, como derrotar um dos melhores jogadores do mundo em uma das principais arenas da modalidade, o público torna as coisas mais difíceis.

É verdade que Zajonc não era um especialista em tênis. Em parte, ele desenvolveu a teoria observando baratas. Zajonc e seus colegas de pesquisa descobriram que uma barata completava uma corrida em linha reta mais rapidamente quando havia outras baratas presentes. Entretanto, as mesmas baratas concluíam um labirinto complexo de maneira muito mais eficiente quando estavam sozinhas, e não quando havia uma multidão de baratas acompanhando tudo.

Estudos aprofundados por outros cientistas — envolvendo ginastas e pessoas desempenhando atividades não relacionadas ao esporte — encontraram fenômenos semelhantes. “Na verdade, estamos falando de excitação do córtex no tronco cerebral e na espinha dorsal", disse Michael Gervais, psicólogo que trabalhou com ganhadores do ouro olímpico e o time de futebol americano Seattle Seahawks, da NFL.

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Como explicou Gervais, o público agitado serve como estimulante, acelerando o ritmo cardíaco e a respiração, e todas as demais reações bioquímicas ligadas à tensão. Além disso, a exposição aos estimulantes atenua seus efeitos, e assim um jogador que já disputou dezenas de partidas em grandes estádios diante do público dificilmente sentirá o mesmo estímulo que um jogador menos acostumado à situação, tornando mais fácil alcançar a intensidade relaxada necessária para o desempenho ideal. Ausente o público, essa vantagem desaparece.

A situação dos melhores jogadores é agravada ainda pelo fato de, com o tempo, muitos aprenderem a depender de estímulos externos como o rugido do público para alcançar seu auge competitivo. A promessa de receber toda a atenção e bajulação em caso de sucesso se torna uma cenoura viciante.

Depois de sobreviver a Maria Sakkari, classificada na 15ª posição, em três sets disputados na segunda feira, Serena lamentou o desafio de jogar em silêncio depois de duas décadas ouvindo os vivas. “Estou treinando e estou jogando para o público", disse ela. De acordo com Gervais, sem o público, Serena e outros dos melhores do mundo precisam abordar este ambiente único como “uma oportunidade de voltar à pureza do jogo”, pois não há motivação externa (além do prêmio de US$ 3 milhões para o campeão, é claro).

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Em comparação, muitos jogadores comparativamente inferiores entram em quadra preocupados em não serem humilhados. Sem o público, essa perspectiva some, bem como a tensão que ela acarreta. Isso não significa que não existe tensão. Jennifer disse ter ficado tão nervosa antes da partida de terça que temeu “sujar as calças".

Mas então ela se acalmou em um ambiente mais conhecido. Shelby Rogers, que perdeu para Naomi (6-3 e 6-4) na noite de terça, reconheceu as mesmas circunstâncias ao bater Petra Kvitova na segunda feira e Elena Rybakina, do Cazaquistão, classificada na 11ª colocação, na semana passada. “Para ela, é só seguir o protocolo”, disse Ryan Nau, técnico de Shelby. “Viemos aqui pensando que não haveria ninguém.” / Tradução de Augusto Calil

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