Projeto de tênis tira garoto de guerra na Rocinha rumo aos EUA

Valtinho, 11 anos, supera problemas na favela para fazer o que mais gosta: jogar tênis e construir um futuro

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Enquanto a Rocinha era tomada pelas Forças Armadas no dia 22, Valter Albuquerque deixava a escola apreensivo. Morador da maior favela do País, na zona sul do Rio, o menino de 11 anos estava prestes a fazer sua primeira grande viagem da vida. Iria conhecer a IMG Academy, famoso celeiro de tenistas nos Estados Unidos. Mas sua mala quase não chegou ao aeroporto.

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Um tiroteio antes da entrada do Exército no morro impedia sua mãe de levar a bagagem até o filho. Na última hora, a jovem promessa do tênis brasileiro pôde embarcar com a mala para a Flórida, após sua mãe ser liberada por vistoria policial, na saída da comunidade, às pressas.

Valtinho, um dos maiores destaques do projeto social do Rio Open. Foto: Rogério Santana

As situações de violência fazem parte da rotina de Valtinho. Porém, durante oito dias, enquanto a Rocinha era cercada por quase mil homens do Exército, ele trocou a instabilidade da favela por uma nova realidade na reverenciada academia que antes parecia inalcançável para um filho de garçom e de uma cozinheira, com o sonho de virar tenista profissional.

No Rio, ele deixou para trás uma comunidade que era palco de dezenas de prisões, apreensão de drogas e mortes. Nos EUA, fazia treinos intensos e recebia orientações e instruções preciosas de Nick Bollettieri, classificado pelo próprio Valtinho como “uma lenda viva do tênis”. Não por acaso. O norte-americano de 86 anos lidera a academia responsável por formar dez tenistas que já lideraram o ranking mundial – atletas do gabarito de André Agassi, Serena Williams e Boris Becker.

“Chegar à academia e dar de cara com ele é incrível! Ele me ensinou um monte de coisas”, conta o garoto, que surpreende com o tom adulto na entrevista ao Estado. Tão adulto que não deixa de explicar cada aprendizado, demonstrando seu bom conhecimento de tênis. “Minha preparação da esquerda está melhor, aprendi a ter mais aceleração na cabeça da raquete. Tive muitas dicas sobre técnica e pensamento no jogo. Uma coisa que trago de lá é a estratégia de jogo, para saber como enfrentar qualquer tipo de rival”, diz.

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A viagem de Valtinho até a IMG Academy faz parte de um projeto social do Rio Open, torneio que vem se consolidando no circuito masculino. Ao todo, seis crianças e jovens ganharam a oportunidade, bancada pela organização da competição.

“Queríamos que fosse uma viagem transformadora para eles, uma experiência para a vida, e não somente para o tênis”, explica Luiz Fernando Carvalho, o Lui, diretor do Rio Open.

Mas, se depender dos elogios recebidos, Valtinho pode focar sim numa carreira nas quadras. “O Bollettieri se surpreendeu com o talento dele, disse que já tinha um bom nível de jogo, apesar da pouca idade”, relata Lui.

Com sua meta de virar profissional, o menino da Rocinha, que tinha tudo para seguir outro caminho, se espelha em Djokovic e Gustavo Kuerten. O sérvio é citado por ele apenas pelo nome, denotando intimidade com o ídolo. Quanto a Guga, seu objetivo é um dia repetir “aquela esquerda de uma mão só, na paralela, incrível...”.

Por coincidência, Djokovic e Guga atravessaram o destino do garoto de forma decisiva. Foi por ocasião de uma exibição dos dois, em 2012, que surgiu o projeto que mais tarde se tornaria a Escola Fabiano de Paula. Tenista profissional, Fabiano também mora na favela e é inspiração para a criançada local.

Foi na quadra de tênis da Rocinha que Valtinho, então com seis anos, deu as primeiras raquetadas e se encantou com o esporte. Hoje, aos 11, já tem vida de atleta, alternando treinos na escola e na Tennis Route, principal academia de tênis do País. Ele ganhou a oportunidade de treinar com alguns dos melhores do Brasil, como Thiago Monteiro e Beatriz Haddad, número 1 do Brasil, por se destacar no projeto de Fabiano, que também treina na academia que é liderada pelo capitão do Brasil na Copa Davis, João Zwetsch. “O pessoal viu que eu estava me esforçando e me deu a chance em 2015. Estou lá até hoje, firme e forte”, diz Valtinho.

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Ao mesmo tempo em que transpira na quadra, o menino se destaca no Colégio Pedro II. “Ele é um dos melhores da sua classe. É muito disciplinado, acorda sozinho todos os dias às 5h30 da manhã. E tem muito talento”, atesta o próprio Fabiano de Paula, que vê semelhanças entre a sua trajetória e a do garoto. “Ele tem a vantagem de não precisar trabalhar. Pode focar nos treinamentos. Me vejo como uma cobaia para testar as coisas que os meninos vão usufruir depois. Muito do que ele aprende agora aos 11 anos eu só conheci aos 21.”

De volta ao Brasil quando as Forças Armadas já haviam deixado a Rocinha, Valtinho retomou sua rotina de colégio e treinos. A instabilidade, contudo, ainda é grande no morro. Na sexta-feira, ele deixou de ir para a aula porque tiroteios impediram a entrada dos ônibus escolares na comunidade da Rocinha.