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História, política e cultura do esporte.

Onde Fábio e Randall Pearson se encontram

Saída do ídolo do Cruzeiro é um dramático lembrete: este clube agora é uma empresa. Mas a reação negativa da torcida é um recado ainda mais poderoso: essa empresa ainda é um time de futebol

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Foto do author João Abel
Por João Abel
Atualização:

Boa parte dos milhões de torcedores do Cruzeiro (ou ‘SAF Cruzeiro’, agora sociedade anônima) está incrédula. A Raposa encerrou contrato com um dos maiores ídolos de sua história, o goleiro Fábio, de 41 anos.

Fábio e Randall: uma analogia entre clube-empresa e 'empresas reais' Foto: Cruzeiro/Divulgação e NBC/Reprodução

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Dois títulos brasileiros, três Copas do Brasil, sete mineiros e 976 jogos não foram suficientes para que o atleta e o clube entrassem em acordo para estender o vínculo por mais uma temporada. Fábio já tinha até mesmo uma ‘camisa 1000’ preparada para sua milésima partida pelo Cruzeiro. Uma camisa que nunca será usada.

“Com coração apertado, com lágrimas e dor, eu preciso aceitar que não contam comigo no clube”, escreveu o agora ex-goleiro do Cruzeiro em seu Instagram na noite desta terça.

A reação da torcida foi imediata: inúmeras críticas nas redes sociais e os nomes de Ronaldo, sócio-majoritário do clube, e Paulo André, ex-zagueiro e membro da nova diretoria, foram parar nos assuntos mais comentados do Twitter. As menções, claro, eram negativas.


Demissões, sejam elas um pedido do empregado ou uma decisão do empregador, nunca são fáceis. Todo mundo conhece alguém que passou por um processo traumático de demissão. Seja um amigo, conhecido, você mesmo.

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Ou até na ficção.

A surpreendente demissão de Fábio me trouxe à memória Randall Pearson. O personagem que eu mais gosto de uma das séries que eu mais gosto.

Atenção: a partir de agora, este texto tem spoilers de This Is Us.

Na série, Randall (interpretado pelo brilhante Sterling K. Brown) é o melhor funcionário de sua empresa, a Hartman & Drake Wealth Management. Trabalha lá há dez anos. É sempre o primeiro a chegar e o último a sair. Não tira férias há três anos e trouxe 80% dos clientes da companhia, que atua como uma espécie de consultoria de investimentos financeiros baseados no clima.

Se a Hartman & Drake fosse um time, Randall seria seu capitão e camisa 10. Ou um goleiro símbolo do clube, como Fábio.

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Randall, no entanto, deixa o emprego após perceber a falta de valorização no local em que trabalhava. O gatilho do pedido de demissão ocorre após a morte de seu pai, William (Ron Cephas Jones). Sem nenhuma empatia, a empresa envia apenas uma caixa de peras, fruta a qual Randall é alérgico, e um simples cartão: “Nossos mais profundos sentimentos”.

“Seu pai morre e é isso que seu trabalho te manda?”, questiona Beth (Susan Kelechi Watson), esposa do personagem.

Randall e Beth, personagens de Sterling K. Brown e Susan Kelechi Watson, em 'This Is Us' Foto: NBC/Reprodução

Em This Is Us, a Hartman & Drake perdeu Randall por não tratá-lo com o devido valor. Por aqui, no mundo que chamamos de real, o Cruzeiro também perdeu Fábio por não tratá-lo com o devido valor.

Mas o Cruzeiro não é uma empresa de Wall Street.

Um clube de futebol, ainda que se torne um clube-empresa, não tem o direito de tratar um ídolo como ‘apenas um funcionário’.

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A saída de Fábio é o mais dramático lembrete de Ronaldo e seus parceiros sobre o novo momento do Cruzeiro: este clube agora é uma empresa. Mas a reação negativa dos cruzeirenses é um recado ainda mais poderoso: essa empresa ainda é um time de futebol. Na balança dessa equação, pior para a diretoria da ‘SAF Cruzeiro’, que agora vai precisar recuperar a confiança de seus torcedores.

Torcedores não são meros consumidores. Se você não gosta de uma marca, comprar produtos de outra empresa se torna uma opção.

O futebol transcende a ideia do livre mercado. Envolve cultura, identidade e tradição.

Fábio, camisa 1, não vai vestir a camisa 1000 Foto: Bruno Haddad/Cruzeiro

Esta não é a primeira vez nas últimas semanas que o Cruzeiro demite um grande ídolo sem o devido respeito. Ao contrário de Fábio, a saída do técnico Vanderlei Luxemburgo não foi uma surpresa. Mas dispensá-lo sem sequer citar seu nome na nota oficial foi um gesto de arrogância e até certo desconhecimento de sua importância histórica no clube celeste.

Não se trata aqui de avaliar o mérito técnico de Fábio para uma possível renovação. E também não se trata de demonizar o modelo de gestão empresarial que times como o Cruzeiro, o Botafogo ou até o modesto Athletic Club, de São João Del Rei, decidiram implementar.

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Mas se esse modelo não vier acompanhado do entendimento sobre as manifestações populares do futebol, os projetos de 'sociedade anônima' estarão fadados à falta de credibilidade com o torcedor e, em longo prazo, ao fracasso.

Agora, o Cruzeiro que lute dentro de campo, com seus ‘jogadores-funcionários’, para resgatar o orgulho da torcida. O primeiro compromisso é contra a URT, dia 26, pelo Campeonato Mineiro.

Se você prefere assistir a algo que dificilmente vai te decepcionar, a sexta e última temporada de This Is Us, estreia justamente nesta quinta, 6, com episódios semanais no Star+. Vale a pena ver.

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